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Curando os genes

 

Renato Sabbatini

Interferir diretamente nos genes que controlam todo o funcionamento celular é uma das mais promissoras formas terapêuticas a serem usadas pela medicina do próximo milênio. Os alvos mais óbvios são formados pelas doenças causadas por defeitos no funcionamento normal dos genes, transmissão hereditária de genes capazes de causar doenças ou de favorecê-las, ou mutações. Por exemplo, a fenilcetonúria é um erro inato do metabolismo, ou seja, afeta crianças que nascem com um defeito em um gene que comanda a síntese de uma enzima importante, que, por sua vez, transforma a fenilalanina, um aminoácido presente em muitos alimentos, em tirosina, que é outro aminoácido essencial para o funcionamento celular. Em conseqüência, a fenilalanina se acumula nos líquidos orgânicos, intoxicando vários tipos de células, particularmente as células cerebrais (neurônios), podendo causar retardamento mental e outros tipos de deficiências. Através do conhecido "teste do pezinho", que se faz na maternidade em todas as crianças nascidas, pode-se saber facilmente se elas apresentam a fenilcetonúria (assim chamada porque aparece na urina um componente metabólico derivado do excesso de fenilalanina). Por ser um defeito metabólico de origem genética, não existe tratamento definitivo ou cura para a fenilcetonúria. O principal método é dietoterápico, ou seja, limitar a ingestão de alimentos ricos em fenilalanina (se você olhar o rótulo de uma latinha de Coca-Cola, verá que há um aviso para os pacientes fenilcetonúricos, alertando sobre os altos níveis presentes nesse refrigerante). No futuro, no entanto, o genoma (conjunto de genes de um indivíduo) dos fenilcetonúricos poderá ser modificado, substituindo o gene defeituoso por uma cópia normal, curando de forma definitiva a doença.

Atualmente estão sendo realizados milhares de experimentos clínicos de terapia gênica, como é chamada, para centenas de formas de doenças que potencialmente podem ser corrigidas dessa forma. Entre elas, o aumento das defesas celulares contra o câncer, vários tipos de erros inatos do metabolismo, e até um estudo que pretende fazer crescer novos vasos sangüineos na parede muscular de pessoas com insuficiência cardíaca do tipo isquêmico (irrigação sangüínea diminuida, geralmente em função de artérias ocluídas por placas de colesterol, que provocam dor e sintomas relacionados à deficiência circulatória).

A maioria das terapias gênicas utilizam um processo de inserção dos genes corretos nas células do paciente, que consiste de modificar o genoma de um vírus (por exemplo, o vírus do resfriado, que é alterado genéticamente para não provocar a doença). Ele penetra nas células do paciente, e ao chegar aos cromossomas, dentro dos núcleos celulares, modifica o genoma celular, com a finalidade de produzir cópias de si mesmo. Essa é a forma de reprodução dos vírus. O genoma dos vírus, por sua vez, é modificado pelos pesquisadores, que copiam e reproduzem bilhões de cópias dos genes normais desejados (sintetizados ou copiados de células humanas normais) e os inserem nos vírus. É uma tecnologia já bastante conhecida, que pesquisadores em biologia molecular do mundo todo já dominam.

Tudo seria uma maravilha, no entanto, se as terapias gênicas fossem livres de risco para o paciente. Infelizmente, não o são, pois não existe ainda uma maneira de evitar alterações celulares indesejadas, que podem provocar disfunção dos órgãos-alvo. Isso foi demostrado recentemente pela morte de um paciente nos EUA que morreu por insuficiência hepática (do fígado), depois de ser submetido a uma terapia gênica como a que eu descrevi acima. O adolescente de Tucson, Arizona, sofria de uma desordem genética do fígado, e participava de um estudo clínico experimental que investigava se a substituição do seu gene defeituoso seria capaz de melhorar ou eliminar a doença. Sua morte foi cercada de controvérsias, embora seja esperada em muitas pesquisas clínicas. A poderosa FDA (Food and Drugs Administration) examinou o caso e descobriu que o paciente não poderia ter sido escolhido, pois não apresentava os critérios mínimos determinados pelos pesquisadores, inclusive quanto à gravidade e urgência do caso (ele estava sendo bem controlado por terapias clínicas convencionais), e pelo fato de já apresentar um descontrole metabólico que tornava perigosa a terapia gênica. Também ninguém sabe o que vai acontecer a longo prazo com esses pacientes, pois as terapias gênicas são muito recentes. O fato de se usar um vírus que causa doenças é preocupante, pois ele pode inserir outros genes não controlados ou desconhecidos, que podem causar problemas posteriores, como herpes, câncer, etc. Quem aceita participar de estudos como esse sabe os perigos que está correndo, e tem que assinar uma autorização em que reconhece e aceita a possibilidade de efeitos adversos, inclusive a morte. No entanto, está tão desesperado, que aceita participar, até mesmo sabendo que estará recebendo um placebo (tratamento inefetivo), ao invés da terapia potencialmente salvadora.

Os pais do rapaz estão acionando os médicos e a FDA, mas é preciso entender que riscos como esse são inevitáveis. Se houve erro dos pesquisadores ao descumprir o seu próprio protocolo de seleção de pacientes, eles estão correndo o risco de pagar uma indenização altissima, apesar de todas as garantias por escrito. Os advogados americanos não brincam em serviço, e infelizmente esse fato tem sido um obstáculo grande para a realização de pesquisas clínicas pioneiras e de alto risco para o paciente. Talvez por isso, os pesquisadores estão cada vez mais recorrendo a grupos de pacientes de países subdesenvolvidos, onde a facilidade, o baixo custo e a ausência de legislação de proteção dos direitos dos pacientes, são poderosos atrativos para a fuga de pesquisas médicas dos EUA.

A FDA tem um comitê, chamado Recombinant DNA Advisory Committee (a técnica de DNA recombinante é a utilizada na terapia gênica), o que é um recurso muito necessário e importante. O comitê descobriu dois outros casos de intoxicação hepática e evidências de lesões mortais no fígado, causadas pela terapia gênica em um macado, o que aumentou a suspeita de falta de cuidado ou negligência.

Em conclusão, ainda é muito necessário o controle ético desse tipo de experimento.


 

Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 10/12/99.

Autor: Email: renato@sabbatini.com

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