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Direitos sobre nós mesmos

Renato M.E. Sabbatini

Em 1989, um artista americano chamado Larry Miller realizou um ato, misto de protesto e de gozação, que na época não causou nenhum impacto. Ele registrou publicamente, em um cartório de Nova Iorque, uma declaração de copyright (direito de cópia, ou propriedade intelectual) do seu próprio DNA (ácido deoxirribonucleico, o material existente nos cromossomas, no qual estão codificados todos os genes de um indivíduo). O atestado proibe, especificamente, como acontece com um livro ou fita de vídeo, que qualquer pessoa não autorizada reproduza ou copie a "obra de arte" ou intelectual em posse do detentor do copyright.

Anos mais tarde, graças à Internet e à polêmica causada pela clonagem de um mamífero, a ovelha Dolly, Miller tornou-se subitamente notório. Ele passou a oferecer, pelo correio e pela Internet (endereço: http://www.heck.com/miller/dna.html), certificados individuais de copyright sobre o DNA individual de qualquer pessoa que queira pagar 10 dólares para ele. Existem certificados em inglês, francês, espanhol, italiano, dinamarquês, polonês and japonês. O nome dado por Miller também é interessante: "Universal Notice: Only One/Original Human," (Aviso Universal: Ser Humano Original e Único"). Eu achei isso uma brincadeira ótima, tanto assim que já encomendei o meu certificado, que será devidamente emoldurado e colocado na parede de meu escritório (se não servir para nada, pelo menos será um bom motivo para conversação, ou para meus visitantes ficarem lendo enquanto eu não chego para a reunião...).

O certificado, naturalmente, não tem qualquer valor legal. A Suprema Corte Federal dos EUA negou ao Instituto Nacional de Saúde o direito de patentear ou proteger com direitos de cópia os códigos genéticos contidos no DNA. Na época, a iniciativa do Instituto causou surpresa e indignação, inclusive entre os geneticistas, que em sua maioria são contra esse tipo de usurpação de uma coisa "feita" pela Natureza. O Instituto Nacional de Saúde alegou que estava justamente tentando proteger o trabalho de descoberta de seus pesquisadores, através do Projeto Genoma Humano (a tentativa bilionária de mapear todos os genes humanos), contra a exploração comercial indevida por empresas farmacêuticas ou de biotecnologia. No entanto, a Suprema Corte autorizou as patentes para animais transgênicos (animais nos quais são inseridos genes de outras espécies, formando híbridos), pois eles são frutos do engenho humano. Como sua produção em escala industrial custa muito dinheiro, e como eles geralmente foram feitos com fins comerciais, a lei das patentes se aplica.

O brado de independência e de rebeldia do americano Miller pode ter mais conseqüências que ele imagina. Com a entrada de poderosos interesses econômicos no mercado, principalmente no mercado americano, pode ser que a situação mude, e o copyright do DNA passe a ser permitido e até incentivado. Nesse caso, a providência de Miller e das milhares de pessoas que já compraram e registram seus certificados, passará a ter validade. Se isso ocorrer, as empresas de biotecnologia estarão em maus lençois, pois o DNA de Miller é 99% igual a de qualquer outro ser humano. Assim, pelo conceito de plágio, qualquer cópia de DNA seria 99% igual à de Miller, e seus herdeiros poderão processar por plágio a indústria que tentar clonar um ser humano ! É um negócio totalmente enlouquecedor.

O mais curioso da história é que Miller declarou que já estabeleceu uma espécie de bolsa de mercadorias (commodities) para a venda e compra de certificados. Ele alega ter a posse do copyright do DNA de algumas dezenas de pessoas, dos quais comprou o certificado (por uma quantia não declarada, mas se o preço for bom provavelmente venderei o meu...). Assim, se houver algum processo jurídico contra uma companhia de bioengenharia no futuro, Miller, como dono de múltiplos DNAs, poderá abrir um número correspondente de processos em ação coletiva, e ganhar muito mais dinheiro.

Apesar de toda essa brincadeira, e da declaração do americano que ele está mais interessado em fazer as pessoas pensarem sobre os direitos dela sobre o seu próprio genoma, do que ganhar dinheiro, os juristas são unânimes em declarar que para exercer uma proteção efetiva, não basta fazer o copyright, é necesáriop também registrar uma patente.

No entanto, como o registro de uma patente exige a declaração completa da técnica por parte do inventor, voltamos à estaca zero, ou seja, é preciso primeiro sermos capazes de mapear completamente os genes de uma pessoa específica, antes de pedir a patente.


 

Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 04/03/97.

Autor: Email: renato@sabbatini.com
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