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A loucura dos outros

Renato M.E. Sabbatini

"Running amok" é uma expressão da língua inglesa que não tem uma tradução exata para o português, mas que significa, aproximadamente, uma situação de descontrole total. A palavra "amok" vem do javanês, e é o nome de uma síndrome psicopatológica bastante conhecida na região, entre os povos de origem malaia. Segundo a definição do psiquiatra Dr. Paulo Dalgalarrondo, professor de psiquiatria da UNICAMP, em seu fascinante livro "Civilização e Loucura", recém lançado pela Editora Lemos, "o amok é um quadro explosivo repentino, no qual o indivíduo acometido sai correndo, munido de uma arma (faca, pedaço de pau, etc.), atacando indiscriminadamente qualquer pessoa ou animal que encontre no caminho. Ocorre geralmente após alguns dias de certo isolamento social e aparente tristeza. Após o episódio, que freqüentemente é muito intenso e violento, há, geralmente, amnésia (perda de memória) para o ocorrido, mas o indivíduo admite sua culpa e as vezes suicida-se".

O amok é geralmente reconhecido pelos especialistas, como um quadro patológico característico de uma etnia, e que não existe de forma idêntica em outras. Existem outras, como o "latah", também na Malásia, o koro, etc. São denominados de síndromes culturalmente delimitadas, e provocaram um intenso debate no seio da psiquiatria. O livro do Dr. Dalgalarrondo trata exatamente dessa corrente, que é chamada de etnopsiquiatria. O seu objetivo é estudar as diferentes formas e incidências de distúrbios mentais nos povos e etnias, e derivar princípios gerais sobre as mesmas.

Um outro exemplo: hoje se sabe que a esquizofrenia (antigamente chamada de "demência precoce", pois se manifesta pela primeira vez entre jovens, o que é o oposto de "demência senil") ocorre em todos os povos, primitivos ou civilizados. Já a depressão e certas demências causadas por doenças neurológicas "típicas" de povos urbanizados, como a neurossífilis (a "demência paralítica") são muito mais raros entre povos aborígenes do que entre os europeus. Os primeiros exploradores europeus que percorreram a África, América do Sul e Oceania, se surpreenderam com a baixa incidência de doenças mentais entre esses povos. Surgiu, até, uma noção de que a loucura era uma doença da civilização, e que quanto mais civilizado fosse um povo, maior seria a incidência das mesmas. Os primeiros neuropsiquiatras, inclusive, chegaram a propor teorias de que o cérebro mais grosseiro ou mais primitivo dos negros e índios, tornavam-nos menos suscetíveis à doença mental ! Mais ainda: da mesma forma que o colonizador traz as doenças infecto-contagiosas, que dizimam os povos autóctones, pouco resistentes às mesmas; o processo civilizatório inocularia a doença mental nos "bons selvagens".

As pesquisas atuais, entretanto, mostram que poucas dessas especulações são verdadeiras. Como se vê pelo caso do "amok", a loucura existe em todas as populações humanas, mas são condicionadas e moduladas pelos aspectos sociais e culturais. Basta ver a tolerância das sociedades a certos fenômenos religiosos, como a possessão por espíritos, na umbanda, ou o "falar por vozes", ou glossolalia, das religiões evangélicas fundamentalista. Em algumas sociedades, elas são consideradas expressões normais e toleráveis, enquanto que em outras são igualadas à formas de alucinação, crises histéricas ou epilépticas, etc.

Estas coisas me vieram à mente, ao comparar o "amok" dos malaios com algumas ocorrências policiais que parecem estar em alta no Brasil: o pai de família, ou o filho, aparentemente normais e pacíficos, explodem em uma fúria de violência por motivos fúteis, matando vários parentes e até visitas que estão em casa, suicidando-se em seguida. Não é parecido com o "amok" ? No entanto, qual é o diagnóstico ocidental para esses casos ? Ninguém sabe o que os causa. Estamos muito longe de sermos capazes de predizer quando eles vão ocorrer, ou mesmo como detectar tendências precoces ou como preveni-los.

Um dos motivos que o livro do Dr. Dalgalarrondo me fascinou, e me manteve acordado à noite, lendo-o como um bom romance policial, é a tradução das notas de um dos maiores famosos psiquiatras de todos os tempos, o alemão Emil Kraepelin, que no final do século passado revolucionou o sistema de classificação objetiva das doenças mentais. Tenho uma ligação sentimental com ele, pois fiz meu pós-doutorado no Instituto Max Planck de Psiquiatria, o antigo Instituto de Pesquisas Psiquiátricas, fundado por Kraepelin em Munique, na Alemanha. Pois bem, o Dr. Kraepelin fez um estudo pioneiro e interessantíssimo, em 1904, no qual comparou as formas de doença mental em 125 doentes "nativos" e 100 europeus, na Ilha de Java. Várias dos artigos e fichas clínicas originais de Kraepelin são reproduzidos no livro, traduzidos diretamente do alemão.

É um material riquíssimo para os que querem compreender melhor o grande mistério que cerca a origem de tantas doenças mentais, como a esquizofrenia.


 

Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas,.31/2/1997

Autor: Email: renato@sabbatini.com
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