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Dividindo-se para crescer

Renato Sabbatini



De todas os fenômenos naturais que fazem parte da vida, talvez o que mais nos impressiona e nos maravilha é o da divisão celular. É através dele que os organismos vivos crescem, se desenvolvem e se multiplicam: seria quase um milagre se os cientistas não entendessem como funciona. Portanto, a divisão celular é praticamente sinônimo de vida.
Isso tudo me veio a mente com a concessão, na semana passada, do prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia para três cientistas que realizaram importantes pesquisas para esclarecer como funciona a divisão celular, Leland H. Hartwell, R. Timothy Hunt e Paul M. Nurse. O primeiro é americano e trabalha no importante Fred Hutchinson Cancer Research Center, em Seattle, EUA, e os dois últimos são pesquisadores do Imperial Cancer Research Fund, na Inglaterra. As descobertas já estão rendendo importantes conseqüências para um dos males que afligem o organismo humano quando algo funciona errado com a divisão celular: as pesquisas mostram que o câncer é um dos seus resultados, pois nele as células que eram normais começam a se multiplicar desordenamente e de forma anormal.

Existem dois tipos de divisão celular: a mitose e a meiose. Na mitose uma célula se divide em duas iguais. As células-filhas têm o mesmo número de cromossomos que a célula-mãe e geralmente são do mesmo tipo. Sem a mitose, morreríamos rapidamente, pois cerca de 2 bilhões de células por dia morrem e são substituídas através da divisão mitótica, no fenômeno da regeneração celular. Quando pegamos uma queimadura solar isso se torna bem evidente: a pele que descasca é formada por bilhões de células da epiderme que morreram por ação dos raios ultravioletas. O eritema (vermelhidão) é uma forte reação inflamatória, com aumento do fluxo sanguíneo no local, provocando os três sintomas clássicos da medicina, dor, rubor e calor. A pele "nova" que surge em seu lugar, é formada pela divisão das células que sobraram (ainda bem!). Em uma queimadura grave de terceiro grau sobram poucas células para a regeneração, e torna-se muitas vezes necessário um implante de pele de outra parte do corpo.


O sangue é outro tecido em que a reprodução celular é importantíssima, pois as células sanguineas de todos os tipos morrem e são continuamente substituidas por verdadeiras "linhas de produção", localizadas na medula dos ossos.

As únicas células que não se reproduzem através de mitose são os neurônios (células nervosas) e os músculos estriados (coração e músculos esqueléticos). É por isso que ocorre a doença de Alzheimer, por exemplo, que é devida à morte maciça de neurônios de um idoso acometido. Isso leva à perdas irreversíveis da memória e alterações na personalidade, comportamento, raciocínio, etc. Se conseguissemos induzir a reprodução neuronal de forma controlada, poderíamos curar esse terrível mal. Na paralisia infantil e no infarto do miocárdio também vemos as conseqüências da não regeneração das células musculares: atrofia do músculo, perda da força muscular, insuficiência circulatória e até a morte (na paralisia infantil, por disfunção dos músculos respiratórios).

Já a meiose é a reprodução celular responsável pela formação dos gametas, ou células sexuais, como os espermatozóides e os óvulos femininos, que são usados na reprodução sexuada, através da fecundação. Na divisão celular, os cromossomos se dividem aleatoriamente em dois conjuntos, um para cada célula-filha. Como é envolvida na reprodução das espécies, não é preciso nem enfatizar aqui a sua importância. Sem a mitose, os organismos não cresceriam e não sobreviveriam. Sem a meiose, não se reproduziriam. Isso dá uma medida da importância do trabalho dos cientistas que ganharam o prêmio Nobel deste ano!

Existem muitissimas doenças (quase todas) em que mitose e meiose são fenômenos fundamentais. No sistema imune, é muito importante a reprodução de linhagens de células específicas para combater um determinado tipo de invasor (uma bactéria ou vírus, por exemplo). Aliás, a divisão de células estranhas dentro do nosso corpo é fundamental para fenômenos como a infecção, a disseminação do organismo, a transmissão dos mesmos para outros organismos, a formação do pus, etc. Nos vários tipos de câncer, inclusive a leucemia, a divisão celular anormal, em quantidade exagerada e formando células atípicas, é o que de mais importante acontece. Aqui vemos uma outra importância de conhecer bem esse fenômeno, e finalmente, conseguir controlá-lo.

A ciência médica, auxiliada pela biologia molecular e pela biologia celular, está prestes a alcançar avanços extraordinários nessa área. Dentro de dez anos, no máximo, conseguiremos controlar muitos eventos de reprodução celular, com precisão, graças à decodificação do genoma humano. Quem viver, verá.

Para Saber Mais

Cell Divisions: Mitosis and Meiosis
Animação gráfica com as fases da mitose
Video de uma mitose em célula pulmonar
The 2001 Nobel Prize in Physiology and Medicine



Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 21/10/2001.
Autor: Email: renato@sabbatini.com

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