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Vacas loucas e outras loucuras

Renato M.E. Sabbatini

É curioso observar a histeria coletiva que ocorre cada vez que uma doença viral misteriosa ameaça a população dos países desenvolvidos. Geralmente é uma coisa totalmente desproporcional ao risco, mas a mídia tem um papel importante na enorme amplificação da importância do surto, pressionando as autoridades sanitárias a agirem de forma muitas vezes irracional e precipitada. Foi assim com a febre de Ebola, que matou alguns africanos pobres em um rincão isolado da selva, no ano passado. Dois ou três europeus e americanos foram afetados. Gastaram-se rios de tinta, montanhas de papel, milhões de dólares em medidas inúteis (no Brasil, o senhor ministro da Saúde, um médico conceituado, pensou até em testar todos os viajantes oriundos da África, coisa tão custosa que nem os países de maior risco, como a Bélgica, pensaram em fazer. Nós, porém, como somos muito ricos...).

Está acontecendo a mesma coisa agora, com a famosa síndrome da vaca louca, uma doença nervosa degenerativa, conhecida pelo nome mais científico e complicado de encefalopatia espongiforme bovina, ou BSE, de sua sigla em inglês. Da mesma forma que a febre aftosa, que condenou os rebanhos brasileiros a não terem sua carne consumida nos mercados europeus e americano por muito tempo, é uma doença de desenvolvimento lento, crônico, e que não parece passar para seres humanos através do consumo do leite e da carne. Agora é a nossa vingança: estão falando em aniquilar milhões de bois e vacas na Grã-Bretanha, a pátria do rosbife, do gado Angus e Hereford, da mais nobre carne que se pode colocar numa mesa. Verdadeiros Cadillacs sobre quatro patas...

A medida, ao meu ver, é desnecessária, e vai levar milhares de criadores à ruina completa. Bastaria fazer um controle sanitário, como é feito com outras zoonoses (doenças transmitidas para o homem por animais) relacionadas ao consumo de carne e derivados do leite. Pois vejam: doenças muito mais sérias que essa tal de BSE acometem centenas de milhares de pessoas por ano, matando muitas delas, causando abortos, deficiências congênitas e sérias doenças secundárias, como epilepsia ou tumores, transmitidas praticamente todos os dias por carne e leite infectados. Ninguém nunca pensou em realizar o holocausto bovino, suíno ou caprino por causa disso. São doenças que foram praticamente eliminadas nos países desenvolvidos, graças aos controles sanitários na origem, mas que ainda são sérios problemas em países como o nosso. Estou falando da brucelose, da toxoplasmose, da cisticercose e da tuberculose, que afetam carne e leite não controlados e consumidos sem esterilização, e são verdadeiros problemas de saúde pública, de grandeza e alcance desconhecidos. A toxoplasmose, por exemplo, transmitida pelo Toxoplasma gondii, pode causar seríssimos e incuráveis problemas congênitos em fetos, quando a mãe fica grávida e está infectada (90 % das pessoas que têm anticorpos contra o toxoplasma s& o kuru, a doença de Creutzfeld-Jakob, em seres humanos, e o scrapie, em ovelhas. Aparentemente, o agente causador das infecções não mereceria a classificação de ser vivo, pois é apenas uma proteína encapsulada ultraminúscula, chamada príon. Por não ter DNA nem RNA, é um mistério como o príon se reproduz e se transfecta. Agora, evidenciaram apenas 50 casos de doenças desse tipo em cidadãos britânicos, aventando-se a hipótese de que seriam manifestações da BSE. Bastante duvidosa essa ligação, pois alguns dos infectados são vegetarianos... Sem falar na extrema raridade.

Mas, a histeria coletiva já se instalou, e nesses casos, a irracionalidade segue o seu curso inevitável.


Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 18/4/96
Autor: Email: renato@sabbatini.com

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