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Gutemberg e a Internet

Renato Sabbatini

Toda vez que é inventado um novo método de reprodução do conhecimento, ocorre uma crise jurídica. A primeira delas foi quando Gutemberg tornou possível a impressão rápida, barata, e em grandes quantidades, de livros, revistas e jornais. Com isso, o laborioso e lento trabalho dos copistas tornou-se tão obsoleto quanto os dinossauros, praticamente do noite para o dia, e as cópias piratas se tornaram realidade, pela primeira vez.

Demorou um certo tempo até a humanidade reagir, com a criação das leis nacionais e internacionais sobre a propriedade intelectual e o direito de cópia, que até hoje têm uma eficácia duvidosa (por exemplo, Cuba, Coréia e China se notabilizaram, a partir da década dos 70s, por copiarem descaradamente livros técnicos ocidentais, a um preço infimamente menor. Em Cuba, um livro de Medicina Interna do Harrison, que custa quase 200 reais no Brasil, pode ser comprado por uns 10 dólares em qualquer livraria do Estado, e os estudantes de Medicina recebem-no gratuitamente...).

O século 20 trouxe a fotocópia e a cópia xerográfica (que quer dizer cópia a seco !). Os aparelhos de xerox (nome que já virou substantivo comum) foram uma segunda revolução substancial. Quando eu entrei na faculdade (não faz tanto tempo assim...), não existia o xerox, e o coitado do estudante tinha que anotar tudo à mão quando ia à biblioteca. Atualmente, a vida moderna seria impensável sem essa maravilha da tecnologia, mas o problema das cópias ilegais multiplicou-se milhões de vezes. A rigor, todos nós estamos cometendo um delito punível pela lei quando xerocamos um livro ou artigo de revista, mas quem liga para isso ? Tornou-se um delito socialmente aceitável, para desespero dos autores e editores (estes últimos chegaram a pressionar por leis proibindo máquinas copiadoras em bibliotecas, mas desistiram). Algumas editoras brasileiras chegaram a produzir livros com páginas alternadas em cor laranja, que obscurece totalmente a cópia, para tentar evitar a sangria financeira provocada pelo xerox.

Agora, faltando poucos anos para o século 21, chegou a avassaladora e onipresente Internet, a rede global de computadores, que tem mais de 50 milhões de usuários, e cerca de 14 milhões de computadores interligados, em quase todos os países. A revolução da Internet consiste na distribuição quase instantânea, e sem papel, de qualquer tipo de informação (textos, fotos, desenhos, vídeos). Os documentos não "existem" mais fisicamente; eles são entidades virtuais, que podem ser reproduzidas pelos próprios usuários, de qualquer parte do mundo, e alteradas com uma assustadora facilidade. O pesadelo para os detentores de direitos autorais se tornou permanente, e incomparavel. Existem bibliotecas digitais inteiras em formação (uma delas, ironicamente, se chama Projeto Gutemberg), e embora a maioria delas esteja colocando apenas livros da literatura clássica para os quais já caducou o direito de autor, nada impede que um paiseco qualquer, fora do alcance dos acordos mundiais de copyright, comece a colocar obras protegidas.

Não adianta dar uma de avestruz, como muitos editores estão fazendo ("ninguém lê livros pela Internet", "só mudou o modelo econômico", etc.). A realidade é avassaladora e indubitável. A facilidade de cópia ilegal, plágio e fraude aumentou exponencialmente com as publicações eletrônicas. Estamos apenas na infância de uma revolução muitas vezes maior do que a da imprensa por tipos móveis, iniciada 500 anos atrás. A Internet poderia ter sido "inventada" de uma outra maneira: seria fácil, por exemplo, criar protocolos (as linguagens de comunicação que comandam as redes) que incluissem "marcas d' água" digitais indeléveis nos documentos e imagens, de modo a identificar o proprietário intelectual. Isso inibiria bastante as cópias ilegais. No entanto, originalmente a Internet foi criada por pesquisadores acadêmicos, com o objetivo de facilitar a distribuição de trabalhos de pesquisa, e que não tinham a menor intenção (acredito mesmo que nem pensaram nisso) de criar mecanismos de restrição da distribuição desinteressada.

Agora é tarde, a não ser que o crescente valor comercial da Internet acabe por pressionar a adoção de novos protocolos contendo esses mecanismos de proteção contra cópias indevidas.


Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 26/4/98.

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