Indice de Artigos

A selva de silício

Renato M.E. Sabbatini

A notícia no Correio Popular parecia gozação de algum repórter bem-humorado: "Bolívia quer desafiar os tigres asiáticos".

Explica-se: o governo boliviano deseja incrementar a economia do país, transformando-o em um centro exportador de produtos simples, mas de alto valor agregado, tais como vestuários, eletrodomésticos e computadores. Passaria a competir, portanto, com a especialidade atual de alguns países do sudeste asiático, tais como a Coréia do Sul, Taiwan, Singapura, Hong-Kong e Tailândia. Só para dar um exemplo, Taiwan, um país menor do que Sergipe, exporta 60 bilhões de dólares dessas e de outras "quinquilharias", por ano !

Parece estranho que os computadores tenham sido enquadrados na mesma categoria que abrigos de moleton e liquidificadores. Afinal, todo mundo sabe que computadores são "high-tech" (alta tecnologia), ao contrário das roupas e eletrodomésticos, mais simples. Chega a ser risível, portanto, que a Bolívia, um dos países mais pobres e atrasados da América Latina, tenha a pretensão de se tornar uma potência exportadora de computadores. Se nem o Brasil conseguiu...

Ledo engano. Fabricar computador é uma coisa muito diferente de inventar computador, e, atualmente, esta é uma tecnologia industrial extremamente acessível e fácil de ser implementada. Em Taiwan, por exemplo, a coisa funciona da seguinte maneira: um escritório central de engenharia, pertencente a um consórcio indústria-governo, produz diversos projetos padronizados de microcomputadores, periféricos, software, etc. Por uns reles US$ 200, qualquer indústria de fundo de quintal pode comprar um projeto, adquirir componentes eletrônicos, e montar produtos (sem marca), entregando-os para exportação por uma companhia de trading. Em razão do baixo custo dos componentes e da mão-de-obra local, e do investimento praticamente nulo em pesquisa e desenvolvimento, os equipamentos resultantes tem preços extremamente competitivos no mercado mundial. Se você for ao Paraguai em um final de semana poderá observar que 99% das "muambas" computacionais à venda têm origens como essa. A mesma equação vale para a indústria de roupas, de brinquedos, e de eletrodomésticos.

Em conclusão, não há motivo nenhum para darmos risadas das intenções bolivianas. Ao contrário: temos todos os motivos para ficarmos bastante preocupados. A indústria brasileira de computadores, depois de 20 anos de proteção, reserva de mercado e grandes investimentos em infraestrutura industrial e treinamento de técnicos, não é capaz de exportar praticamente nada. Pior: passou a importar pesadamente do exterior (principalmente dos tigres asiáticos, que têm melhores preços e qualidade razoável), transformando-se em montadoras de pequena escala, apenas para o mercado interno. É um negócio simplesmente inexplicável, que chega a desafiar a lógica e o bom senso. Mas que, infelizmente, está acontecendo.

Já que não temos vocação para tigre asiático, deveríamos, então, nos prepararmos para ser a onça americana. A inteligência, atualmente, não está em montar e exportar computadores, e sim em criar e exportar (para os países montadores) os complexos componentes eletrônicos e o software, sem os quais a montagem é impossível. Este, aliás, é o caminho escolhido pelos Estados Unidos e pelo Japão, principalmente por este último. O mercado produtor de tecnologia original está cada vez mais concentrado na mão de poucas indústrias e países. Basta ver o pandemônio que acometeu, recentemente, o mercado mundial de computadores. Uma indústria do Japão, que detinha virtual monopólio de fabricação de uma resina plástica com a qual são embalados os circuitos integrados ("chips"), pegou fogo. Da noite para o dia, o preço das memórias de computadores praticamente triplicou. Naturalmente, os poucos que tinham tecnologia para produzir a tal da resina ganharam rios de dinheiro.

Esse exemplo mostra a complexa interdependência transnacional existente na indústria de alta tecnologia, e o grau de concentração dos geradores de conhecimento nessa área. Por enquanto, o Brasil está fora dos dois mundos que estão fazendo dinheiro, ou seja, os montadores e os inventores. Vamos ter que achar nossa real vocação, depressinha. Senão vamos acabar importando computadores da Bolívia...


Publicado em: Jornal Correio Popular, 30/9/93, Campinas,
Autor: sabbatin@nib.unicamp.br
Jornal: cpopular@cpopular.com.br