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Da futilidade da guerra

 

Renato Sabbatini

Hoje vou sair um pouco do foco habitual de minha coluna, para refletir sobre o drama humano de Kosovo e, pedindo licença para nosso "expert" em armas, o insuperável Roberto Godoy, contestar a falácia da OTAN de que apenas a guerra aérea contra a Iugoslávia será suficiente para derrubar o regime de Milosevic, ou interromper o interminável genocídio nos Balcãs.

Me parece incontestável que os militares e governantes aliados parecem ter a memória curta, e que estão repetindo erros do passado, como na Alemanha e no Japão, na II Guerra, e no Vietnã. Objetivos e técnicas militares muito parecidas foram utilizadas, com resultados igualmente desastrosos e ineficazes. É facílimo provar que a tese da OTAN é de uma enorme futilidade.

Na II Guerra, o bombardeio das cidades alemãs foi imensamente destrutivo. Cerca de 40% dos prédios foram destruídos nas 50 maiores cidades alemãs, e na maioria delas o centro urbano foi destruído em 80 a 90%. Os aliados desenvolveram técnicas diabólicas de destruição, como as bombas incendiárias (um único ataque noturno, em Hamburgo, queimou mais de 30 mil pessoas), as bombas de fragmentação e de detonação retardada (que matava as equipes de salvamento que acorriam ao local) e o famigerado bombardeio "em tapete", em que as bombas de sucessivas ondas de aviões calcinavam cada metro quadrado de terreno em alucinante e inescapável sucessão. Em Munique, que conheci bem por ter morado lá por dois anos, um único bombardeio "em tapete" em 1943 destruiu 80% da cidade! Os americanos bombardeavam de dia, e os ingleses de noite, com armadas de ataque que chegavam a ter mil aviões. Tesouros preciosos de toda a humanidade, como a cidade de Dresden, simplesmente sumiram do mapa.

No entanto, a capacidade industrial-militar da Alemanha resistiu impávida a mais de três anos de feroz bombardeio do país e de seus territórios ocupados. Poucos meses antes da guerra terminar, fábricas totalmente subterrâneas (visitei uma perto de Viena, impressionante), trabalhando com escravos de guerra, produziam centenas de sofisticados caças a jato por mês. Apesar de mais de 40  mil km de ferrovias terem sido destruídos, o transporte de judeus para os campos de concentração também foi pouco afetado, a tal ponto que a requisição de vagões, locomotivas e rotas pela SS para este fim atrapalharam o fronte de guerra contra a União Soviética em várias ocasiões. A Alemanha foi derrotada e o holocausto interrompido apenas quando as forças terrestres dos aliados penetraram o solo alemão.

No Japão foi a mesma coisa. Selvagens bombardeios incendiários destruíram Tóquio e as maiores cidades japonesas (o calor gerado pelos incêndios era tanto que as frágeis casas de papel dos japoneses se incendiavam espontaneamente à distância, sem necessidade de mais bombas), mas afetaram pouco a capacidade militar japonesa. Foi somente o uso de duas bombas atômicas, matando mais de 200 mil pessoas, que levou o Japão à rendição. Os militares americanos quiseram fazer isso no Vietnã, mas a opinião pública mundial condenaria os EUA. Será que é o que a NATO também está pensando a mesma coisa em relação à teimosa Iugoslávia?

Durante a guerra do Vietnã, os EUA também fizeram uma das mais brutais e extensas campanhas de bombardeio e ataques aéreos da história, dirigida contra o Vietnã do Norte, com dois objetivos principais (muito similares aos da atual guerra da Iugoslávia): 1) dar ao inimigo uma lição, destruindo sua infraestrutura, e obrigando-o a negociar, 2) destruir sua capacidade de invadir com tropas o Vietnã do Sul. Embora o bombardeio de Hanói e da trilha de Ho Chi Min em 1965, 1968 e 1972 tivesse causado danos extensos ao país (foram utilizadas mais bombas do que na II Guerra, numa área muito menor), ambos objetivos falharam. Os vietnamitas do norte se recusaram a ceder, e os resultados estratégicos foram muito pequenos. Em última análise, nos parece absurdo que uma nação poderosa como os EUA tenha perdido uma guerra desencadeada com toda sua fúria tecnológica contra um minúsculo país a mais de 15 mil km de distância. Mas é o que está se repetindo agora no Kosovo, um paisinho menor em população e área que a maioria dos estados brasileiros.

O fato é que tanto na II Guerra Mundial quanto no Vietnã, os aliados também confiaram demais no poder da guerra aérea e no desenvolvimento de novas tecnologias. Na metade final da guerra contra a Alemanha e o Japão, tanto a Inglaterra quanto os EUA passaram a usar rádio-orientação das esquadrilhas de ataque, radares de bordo, giroscópios Sperry e acuradas alças de mira opto-eletrônicas de bombardeio a altas altitudes, que aumentaram consideravelmente a precisão das missões de bombardeio, ao mesmo tempo preservando mais os aviões do fogo antiaéreo. Foram desenvolvidos também inúmeros tipos de novas munições, inclusive mísseis aerotransportados e bombas arrasa-quarteirão. Durante a guerra do Vietnã foram usadas pela primeira vez as "smart bombs" (bombas inteligentes), como a Walleye, que era guiada por câmara de vídeo, bem como misséis ar-ar e helicópteros de ataque. Foram introduzidas técnicas de supressão eletrônica que largamente poupou os bombardeiros B-52, que voavam à noite, a 10 mil metros de altitude, da detecção pelo radar e do ataque dos caças vietnamitas e da artilharia antiaérea.

Nada disso, entretanto, obteve sucesso em derrubar as lideranças locais (todas ditatoriais), como os aliados imaginavam que ocorreria. Hitler continuou, assim como os líderes japoneses e vietnamitas, até o aamrgo final. Porque isso ocorreria com Milosevic? O apoio da população a ele aumentou, ao invés de diminuir, com os bombardeios da OTAN. No Vietnã, sabemos qual foi o resultado: os presidentes Jonhson e Nixon não tinham uma noção clara do que esperavam conseguir com a campanha militar, e acabaram desacreditados e desautorizados pela opinião pública mundial e dos EUA… Paradoxalmente, a noção de que eram invencíveis levou os EUA à derrota.

Como disse o famoso historiador americano, George Santayana, "aqueles que ignoram as lições da história estão condenados a repetí-la". Essas palavras estão gravadas na parede, logo na entrada no museu do campo de concentração de Dachau, perto de Munique, que visitei uma vez. É um monumento lancinante ao poder do mal e da destruição insensata, que nos faz chorar, como acontece hoje com o drama de Kosovo.


Correio PopularPublicado em: Jornal Correio Popular, Campinas,  14/5/99.

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