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A universidade para todos

 

Renato Sabbatini

 

Entre as estatísticas educacionais vergonhosas que o Brasil apresenta, uma é especialmente relevante para o binômio educação-desenvolvimento: nossa taxa de escolaridade superior atual é de apenas 12%. Isso significa o seguinte: apenas um entre cada 10 cidadãos entre 18 e 24 anos de idade está fazendo ou terminaram um curso superior (terceiro grau). Para se ter uma idéia comparativa, no Canadá a taxa de escolaridade superior é de 65%. Mesmo comparando o Brasil com outros países na mesma faixa de desenvolvimento econômico, como a Argentina e o Chile, perdemos feio: nossos irmãos latino-americanos têm taxas três vezes maiores do que a nossa!

Em números absolutos, o Brasil é um gigante: temos 2,1 milhões de estudantes universitários. Parece muito, mas não é: se atingissimos as taxas de escolaridade da Argentina, por exemplo, deveriamos ter 5 milhões. Esta, aliás, é a meta do Ministério da Educação e Desportos para o ano 2008: atingir uma taxa de escolaridade superior de 30%, o que seria mais compatível com as necessidades brasileiras de desenvolvimento econômico e social. Todos os estudos mundiais mostram como a maioria dos parâmetros de qualidade de vida se correlaciona com o nível de escolaridade. No entanto, é uma meta que muitos julgam utópica. Por exemplo: a UNICAMP, que têm cerca de 8.000 alunos de graduação, teria que contribuir para a meta aumentando seu número de vagas em 10% ao ano por 10 anos consecutivos, ou seja, chegar em 2008 com 20 a 22.000 alunos de graduação!

Isso é claramente impossível, a não ser que a situação atual se reverta dramaticamente. A UNICAMP, assim como todo o sistema universitário público brasileiro, passa por uma imensa crise financeira, que vem se agravando nos últimos meses, em função do decréscimo do repasse de verbas do estado, atingido duramente em suas receitas pela recessão. A UNICAMP, que tem um dos mais impressionantes orçamentos anuais (mais de 400 milhões de reais), está com um déficit superior a 10%, com contratações congeladas de novos docentes, e grandes dificuldades para resolver a crise sem maiores danos ao sistema atual. Nosso reitor é a pessoa mais competente para explicar o que necessitaríamos para atingir a meta pelo Governo Federal, mas creio que teríamos que receber entre 40 a 60 milhões de reais a mais por ano, todos os anos, para poder expandir o número de vagas. Não é muito dinheiro, se compararmos com as fortunas que o governo gasta em propaganda (uma UNICAMP por ano) ou em socorrer as falcatruas do sistema bancário. Corresponde apenas a 1% do que paga de juros aos bancos internacionais, para dar outro exemplo.

Existem dois outros obstáculos sérios à essa expansão pretendida pelo governo (e por todos nós, evidentemente). O primeiro é que o Brasil está com um péssimo perfil com relação à participação do poder público no ensino superior. Atualmente, 60% dos estudantes universitários brasileiros estudam em entidades privadas, uma das (des)proporções maiores do mundo. Em praticamente todos os países da Europa, no Japão, e na América do Norte, bem como na grande maioria dos países mais ricos da América Latina, esse percentual varia entre 80 a 100%. E o ensino superior, por suas características, não pode seguir um modelo caça-níqueis, nitidamente comercial, como o governo deixou ocorrer no Brasil. Isso aconteceu porque nos últimos 30 anos o Estado claramente se retirou do setor educacional, deixando de investir em sua expansão e qualidade, e falhando em atender a explosiva demanda criada pelo desenvolvimento do país. É só ver as absurdas relações entre número de candidatos e vagas oferecidas na universidade pública.

Embora a universidade particular tenha melhorado de nível nos últimos anos (basicamente em função das exigências legais, como a da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação), ela ainda é paupérrima em seus indicadores de qualidade. O grande problema não é o fato de ser paga (nos EUA, toda as universidades públicas exigem pagamento de taxas elevadas pelos alunos), mas sim o seu nível de qualidade. A grande maioria não têm cursos de pós-graduação, nem carreira docente, e não incentiva a dedicação integral e a vinculação à pesquisa. Basta ver outras estatísticas preocupantes: menos de 20% de seu corpo docente tem doutorado (na UNICAMP e USP é mais de 80%) e, em média, apenas 3% do alunado superior brasileiro cursa pós-graduação (o ideal seria 20%, a UNICAMP tem quase 50%). E por aí vai.

Apesar de tudo isso, ao propor a meta de 5 milhões de estudantes universitários para 2008, o MEC manteve o mesmo perfil de participação da universidade particular no bolo, ou seja, 60%. Isso significa claramente que o governo pretende continuar ausente do investimento social necessário para expandir o ensino superior público. Pior: significa que talvez uma parcela das universidades públicas tenha que ser privatizada, ou que o governo dê incentivos fiscais ou dinheiro para a expansão da universidade privada. Se for esse o rumo, mais uma vez estaremos perdendo a possibilidade de acelerar a ascenção social das classes mais pobres através da educação, pois o sistema universitário privado encontra-se à beira da saturação. Muitas universidades particulares enfrentam atualmente o espectro de um número de vestibulandos menor do que o de vagas oferecidas, em um grande número de cursos. A razão principal é o custo excessivo dos cursos para os alunos.

Então, como e onde expandir? Com todos esses dados que examinamos, até um deficiente mental seria capaz de deduzir onde está a saída: expandir o ensino superior público e gratuito de qualidade. E ponto. Não vai precisar de tanto dinheiro assim, e os resultados serão espetaculares dentro de 20 anos.

No entanto, infelizmente parece-me óbvio que a participação do ensino privado continuará a aumentar ainda mais, podendo atingir os 80%.

E por que? Em primeiro lugar, pela razão que apontei acima, ou seja, o governo não tem reservado verbas suficientes para a expansão de vagas nas universidades públicas. Há pelo menos dez anos o ensino superior público e gratuito tem se mantido nos mesmos níveis ou crescido a taxas anuais muito baixas, inferiores à do crescimento da demanda provocada pelo grande aumento no número de jovens que conseguem terminar o curso secundário. Em segundo lugar, pela liberalização das regras do jogo, que permitem que as universidades e centros universitários tenham maior autonomia na criação e oferecimento de novos cursos. Embora elas valham para todos, públicos e privados, o setor privado tem muito maior agilidade e recursos financeiros do que o setor público, pois tudo é uma questão de investimentos bem feitos (os alunos remuneram o capital investido, através do ensino pago). Basta verificar, por exemplo, a enorme expansão da UNIP (Universidade Paulista) no interior de São Paulo, que criou dezenas de faculdades em todas as áreas, sem precisar seguir a dolorosa e demorada “via crucis” burocrática de antigamente, imposta pelo MEC.

Em terceiro, já começaram os primeiros boatos de que o governo estaria disposto a privatizar algumas de suas universidades, transferindo patrimônio, corpo docente e discente, e posicionamento no mercado, para quem quiser comprar e administrar. Embora o ministro Paulo Renato tenha negado essa possibilidade, ela faz sentido no contexto das mudanças políticas e estruturais recentes promovidas pelo MEC. Passa a ser tudo justificado como se o governo não tivesse obrigações no desenvolvimento da sociedade, financiando “a fundo perdido” o processo da educação de sua população...

Meu argumento é que o atual modelo de ensino superior é deletério para o país. Baseia-se na lógica da ganância e não do progresso social. Não vai levar à uma mudança substancial do perfil educacional do país e nem vai acelerar a mobilidade social, fatores imprescindíveis para a modernização do país e para uma melhoria da distribuição de renda e das estatísticas sociais brasileiras.

Existem alguns dados impressionantes a respeito das distorções do sistema de ensino superior, que vale a pena comentar. Um deles é de que apenas 10 cursos superiores (entre os mais de 150 existentes) são responsáveis por 60% das vagas disponíveis: direito, medicina, administração, comunicações, ciências sociais, letras, psicologia, engenharia, pedagogia e odontologia. Um indício da aberração: os 260 cursos de direito (75% deles oferecidos pelo  ensino privado) detém 18% de todas as vagas no ensino superior do país! Detalhe: o “provão” feito pelo MEC reprovou nada mais nada menos do que 107 dos 193 cursos avaliados (conceitos insuficiente e regular). A OAB reprova anualmente pelo menos 60% dos alunos formados em direito no país, comprovando o seu baixo nível, e impedindo que exerçam efetivamente a profissão para o qual estudaram (e pagaram...). Trata-se de um verdadeiro estelionato cometido pela maioria das faculdades privadas, que seria punível com processo e prisão, caso fossem pessoas físicas.

Será que o país precisa de tantos advogados, psicólogos e jornalistas? A resposta é não: uma parcela considerável dos alunos formados por esses cursos jamais exercerá essas profissões, e todo mundo sabe disso. A razão porque existem tantas vagas é porque são cursos baratos e fáceis de montar. Enche-se uma classe com 100 ou 200 alunos, e pronto. Só vender cocaína dá mais dinheiro do que isso. O ônus de criar e manter os cursos mais caros fica com o estado, como sempre.

Outra desvantagem muito grande de se ter um sistema educacional superior baseado em faculdades particulares é a qualidade intrinsecamente baixa dos seus cursos, pelo fato de que elas não incentivam o trinômio ensino-pesquisa-extensão que caracteriza as melhores universidades públicas. Porque a UNICAMP, a USP e a UNESP são consideradas ótimas universidades? Não precisa ser gênio para responder: é porque seus docentes têm doutoramento, tempo integral, fazem pesquisa, ensinam na pós-graduação, envolvem os seus alunos na descoberta e na criação do conhecimento, e oferecem uma infraestrutura muito mais sofisticada e atualizada de suporte ao ensino e à pesquisa. Contrastem isso com a grande maioria das universidades particulares, onde os professores sào horistas (pagos por aula), não vivem na universidade e nem se dedicam em tempo integral à ela, não fazem pesquisa e têm um nível geral de capacitação profissional muito mais baixo do que nas universidades públicas. É um ensino livresco, ruim, desmotivador, repetitivo e desatualizado. Os empresários do ensino privado, com raras e honrosas exceções, não querem investir em uma universidade com esses parâmetros mínimos de qualidade, porque tudo isso custa (muito) dinheiro, o que, naturalmente, tornaria o empreendimento deficitário. E quem pode ter “déficit” na área educacional é só o governo, lógico...

Com um nível adequado de investimento, poderemos reverter essa situação em poucas décadas. Minha proposta é exatamente oposta à tendência induzida pela ausência crônica do Estado: temos que começar a estatizar as melhores universidades privadas, dotando-as de professores de ótima qualidade, com carreira docente bem remunerada, exigência e condições para fazer pesquisa. Temos que aumentar a participação do setor público nas vagas do ensino superior, atingindo pelo menos 70% dentro de 10 ou 15 anos. A LDB exige alguns níveis mínimos de titulação acadêmica do corpo docente das faculdades (número de docentes com mestrado e doutorado), mas eles são muito modestos, em minha opinião. Não basta ter titulação: se o professor não se atualizar constantemente através de sua atividade de pesquisa, ela acaba estagnando, parando no tempo, e se acomodando, comprometendo assim a qualidade da formação de seus estudantes. Portanto, temos que aumentar muito o nível de exigência de qualidade das universidades particulares.

São verdades repisadas há pelo menos 30 anos, desde quando iniciei minha carreira acadêmica na USP, e depois na UNICAMP. Mas que são sempre esquecidas pelas nossas autoridades educacionais, muitas das quais tiveram o privilégio de estudar em boas universidades públicas, o que não é verdade para a maioria dos estudantes universitários brasileiros, hoje.

As dificuldades não somente brasileiras. Recentemente, o Canadá, que ostenta um dos mais perfeitos sistemas de ensino superior do mundo (quase 25% dos habitantes do país têm formação universitária, e 85% dos jovens de 18 aos 24 anos estão matriculados em algum curso) fez um corte de 20% nas verbas destinadas a amparar um sistema público, gratuito e universal.

Não é difícil concluir que na raiz da crise universitária brasileira está a falta de dinheiro para melhorar a qualidade dos cursos e o número de vagas. Toda vez que se investiu continua e sistematicamente, o resultado foi positivo, mostrando que a universidade brasileira tem alta capacidade de resposta. É o caso do ensino de pós-graduação das instituições de excelência

Um dado importante é que a capacidade de investir do Estado está muito limitada, e não tem perspectiva de melhorar a curto prazo. As universidades paulistas, por exemplo, são financiadas basicamente pelo ICMS, tendo uma porcentagem fixa do mesmo. Qualquer tentativa de aumentar esse quinhão, como querem os sindicatos dos docentes, está destinadas ao fracasso, pois o aumento de uns implica na diminuição de outros.

Precisaremos de mais criatividade para arranjar dinheiro para as universidades, portanto. O Canadá, a Inglaterra e a França estão recorrendo cada vez mais ao mercado privado,ou seja, levantando fundos junto às empresas. Os EUA são sempre citados como o modelo campeão nesse aspecto. Uma universidade de qualidade, como a Harvard, precisa de 1 a 2 bilhões de dólares por ano, além do que já recebe através do pagamento dos alunos e do governo. Ela consegue isso através de doações privadas (pessoas físicas e jurídicas, principalmente ex-alunos e empresas). Como se pode imaginar, as universidades americanas têm um "know-how" de marketing impressionante, altamente profissionalizado, para atingir essas metas. Nós aqui ainda estamos na Idade da Pedra nessa matéria, pois infelizmente nossa cultura universitária, não é voltada para isso; ao contrário, a idéia do marketing do ensino superior é mal-vista. Nossos professores acham que o Estado tem obrigação perpétua de manter 100% da universidade pública, apesar desse modelo de dependência estar em falência em todo o mundo. É um comportamento de avestruz, para dizer o mínimo.

Pior: a reação das autoridades universitárias à queda nas verbas é dolorosa: congelam novas contratações, cortam gastos, inibem a expansãoe a renovação da infraestrutura, reduzem serviços à população, demitem, eliminam benefícios. Essa é uma atitude negativa, passiva, fatalista. Acho que a universidade tem que reagir de outra maneira: ir à luta, procurar dinheiro no mercado nacional e internacional, mas, principalmente, achar novos modelos de financiamento que suplementem as tetas do governo, em pleno emagrecimento. Me impressiona profundamente o fato de que uma universidade poderosa, de elite e de prestígio como a Unicamp, não esteja usando seu posicionamento e importância na sociedade brasileira para fazer um marketing bem-feito junto à essa mesma sociedade.

É preciso sacudir os ranços do atual modelo de financiamento das universidades públicas e partir para esquemas mais ousados e criativos. Alguns exemplos de boas idéias, que podemos imitar de nossos colegas do Norte:

Contratações de professores vinculadas à doações: o que os americanos chamam de "endowed chairs". No MIT, por exemplo, existem cátedras pagas com dinheiro privado, como a Sony Chair of Media Sciences. No Brasil é praticamente impossível fazer isso.

Contribuições de ex-alunos:. em muitos países, a contribuição dos ex-alunos à sua "alma mater" é quase uma religião. Muitos "adotam" a construção de novos prédios e laboratórios, por exemplo. Na Caltech, um ex-aluno famoso, um engenheiro milionário chamado Beckman, faz doações anuais da ordem de 20 milhões de dólares de um fundo especial estabelecido por ele. Ganhou um instituto inteiro com seu nome. Não precisa dizer que praticamente nenhum dos ex-alunos da Unicamp doa qualquer coisa àquele que é a principal responsável pelo seu sucesso na vida.

Parceria universidade-empresa: devido à velocidade cada vez maior das inovações científicas e tecnológicas, e do acúmulo do conhecimento as empresas têm permanente necessidade de treinamento e reciclagem de seus profissionais, de dominar novas tecnologias e desenvolver novos produtos. A universidade é a parceira ideal para isso, mas existem ainda muitas barreiras internas e externas. Temos que destruir a imagem de torre-de-marfim dos acadêmicos e engajar mais a universidade na comunidade, ganhando muito dinheiro com isso, para manter e melhorar seus programas.

Financiamentos internacionais: existe uma quantidade inacreditável de dinheiro disponível através de fundações privadas e organismos nacionais e internacionais para bons projetos, que o Brasil aproveita muito pouco.

A maior conclusão de tudo isso é que a universidade precisa passar por uma mudança radical de cultura interna. Precisa montar um grupo agressivo de "fund-raising", especializado no marketing focalizado do ensino superior, e ir atrás de dinheiro, esteja ele onde estiver. E parar de se lamentar e de se auto-destruir.
 

Para Saber Mais


Correio PopularPublicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 26/3/99, 9/4/99 e 23/4/99.

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