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Ciência, Tecnologia e Dependência

 

Renato Sabbatini

 

 

Até que ponto a globalização da economia tem afetado o desenvolvimento científico e tecnológico nacional? Como isso se relaciona com o conflito entre soberania nacional e divisão de trabalho internacional? Existe mesmo esse conflito?

Essas são questões que tinham ficado meio fora de moda nos últimos anos, atropeladas pelo ímpeto irresistível da ampla abertura do Brasil aos mercados internacionais, iniciada pelo presidente Collor no início da presente década (e que foi continuada, com muito mais gosto, esforço e resultado, pela equipe do Prof. Fernando Henrique Cardoso).

Na época dos governos militares, a situação econômica e estratégica era outra. A maioria dos países era protecionista, os Tigres Asiáticos mal despontavam, e o Japão começava a sua carreira gloriosa de desmonte do domínio americano em muitos setores da economia (o que, como se viu, acabou terminando em catástrofe financeira para a região asiática). A Cortina de Ferro ainda existia, bem como a Guerra Fria e a divisão do mundo em Primeiro, Segundo e Terceiro. O grande "boom" do desenvolvimento nacional entre os anos 70 e 80 foi promovido por uma doutrina de inspiração nitidamente militar e geopolítica, traçada em grande parte pela "intelligentsia" da Escola Superior de Guerra e dos Generais Geisel e Golbery. A indústria nacional autônoma e o programa de substituição de importações eram vistos como parte desse ambicioso projeto, que visava ao mesmo tempo transformar o Brasil em uma potência regional respeitada e com soberania independente dos fornecedores de armas e de insumos industriais de outros países.

Foi nesse contexto que a ciência e tecnologia nacionais passaram pelo período de "vacas gordas". As reservas impostas à força aos mercados automobilístico, de informática e de automação, telecomunicações, finanças, comunicação social e saúde, entre outros, e o tremendo aumento dos monopólios estatais foram acompanhados por muitos investimentos no sistema de desenvolvimento tecnológico e na formação de recursos humanos de alta qualidade. Convém lembrar, por exemplo, que foi graças a isso que o Brasil se tornou uma potência tecnológica razoavelmente respeitada nas áreas de automação bancária, construção civil pesada, exploração petrolífera, energia elétrica e informática. Foi a época do "milagre brasileiro", que espantou o planeta com taxas de crescimento industrial acima dos 10% anuais. A elite formada na época é a que está no poder das grandes corporações industriais brasileiras, até hoje.

A redemocratização política do país, no entanto, não soube dar continuidade e mais consistência e coerência a esse projeto de soberania cientifica e tecnológica. As sucessivas crises e pa fatores determinantes. E é exatamente isso que está acontecendo.

Um bom exemplo disso ocorre na indústria farmacêutica. O presidente de um laboratório me contou que a maioria dos seus medicamentos tinha a seguinte composição: substância química importada da Suiça, Inglaterra, EUA ou Canadá, papelão de embalagem sueco, envelopes de alumínio venezuelano, impressão da bula no Chile. Mas o preço final do medicamento é feito em moeda nacional. Desregulamentado, é absurdamente mais alto que na maioria dos países (mesmo com o salário mínimo dez vezes menor), proporcionando uma margem de lucratividade obscena. Tudo isso financiado com um dólar artificialmente barato, mantido assim às custas do que hoje sabemos ter sido a poupança nacional. Para proteger os interesses e os investimentos das indústrias multinacionais, Collor fez passar, e Fernando Henrique sustentou, o respeito draconiano às patentes internacionais. Resultado: atualmente a pesquisa de novos fármacos no Brasil é próxima de zero, apesar de todo o potencial de mercado (o quinto maior do mundo) que temos nessa área, bem como a riqueza de recursos em insumos químicos.

Alguma coisa está errada, não? Como podemos aspirar a ser uma potência econômica se não temos geração autônoma de ciência e tecnologia? Parece que o absurdo dessa situação não sensibiliza nossas autoridades, que prosseguem em sua tarefa de desmonte e de entreguismo sem limites.

Minha (melancólica) conclusão é que o Brasil se perdeu nessa dança de "modelos". Virou um patético "mercado aberto", regido pelos movimentos totalmente livres dos capitais especulativos, e exportando uma parcela considerável da renda nacional. Liquidou qualquer possibilidade de recuperação de sua autonomia científica e tecnológica a médio prazo, aumentando dramaticamente nossa dependência de decisões tomadas fora do país. Continua competitivo apenas em bens de baixo valor (sapatos, soja, suco de laranja…), com preços determinados pelo comprador, e mesmo assim, apenas até que a China nos devore.  Em compensação, paga cada vez mais caro pelo conhecimento que não consegue gerar, com o preço ditado pelo vendedor… Uma hora vai quebrar, só não vê quem não quer.

Globalização é boa na Comunidade Européia, onde os paises centrais são homogêneos e equivalentes em poderio científico, tecnológico e econômico. Até uma criança sabe que não se colocam elefantes e formigas dançando na mesma sala. Alguém vai acabar esmagado e nós já sabemos quem é.


Correio PopularPublicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 26/2/99.

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