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Buracos negros, moscas e tumores

Renato Sabbatini

Se você fosse o diretor de uma agência de financiamento de pesquisas científicas no Brasil, e tivesse um milhão de reais para dar para uma (e apenas uma) das três pesquisas abaixo, qual escolheria?

1) Um grupo de astrônomos quer estudar um "buraco negro" que parece existir em uma galáxia que fica a 10 milhões de anos-luz da Terra. Buraco negro é o nome que se dá a uma ex-estrela, que colapsou sobre si mesma, se reduzindo a um ponto infinitesimal no espaço, mas com a mesma densidade da estrela original. Acredita-se que o campo gravitacional exercido por ele seja tão grande que impeça a saída da luz da estrela, daí o nome. Ninguém jamais viu ou comprovou existir um buraco negro: ele é um resultado de cálculos matemáticos abstratos sobre a estrutura do Universo. O dinheiro vai ser usado para comprar uns aparelhos carissimos e contratar assistentes, que não farão mais nada na vida a não ser analisar os resultados gerados por esses aparelhos. Seu estudo não tem a menor aplicação prática, e certamente nunca terá, para uma estrela tão longe do nosso planeta.

2) Um geneticista de uma universidade particular do nosso estado quer estudar os genes da mosca-das-frutas (Drosophila), uma espécie de inseto muito comum em todo o mundo, e que é muito importante para a genética, por ser fácil de estudar e se reproduzir rapidamente. O estudo tem por objetivo localizar os genes responsáveis por malformações induzidas por radiação (mosquinhas que nascem sem olhos, sem patas, sem asas, etc.). Essas moscas são pragas da lavoura em alguns países, mas o pesquisador não acha isso importante: ele quer apenas entender mecanismos genéticos que podem ser similares aos responsáveis por doenças congênitas em crianças. Existe um potencial para aplicabilidade prática, portanto, mas o pesquisador não têm certeza se vai dar certo, e se tiver, quantas décadas vai demorar para trazer benefícios para a genética humana. O dinheiro vai ser utilizado para comprar uns aparelhos carissimos e contratar assistentes. Ambos poderão ser usados pelo mesmo departamento para aplicação imediata em qualquer pesquisa de biologia molecular, inclusive humana.

3) Médicos de um respeitado centro de pesquisas de uma universidade pública querem determinar quais são os melhores agentes químicos para matar tumores experimentais de mama em ratas e macacas. Depois, pretendem realizar pesquisas com mulheres com câncer de mama, para ver se as substâncias que funcionaram com os animais têm algum efeito quimioterápico significativo. A aplicabilidade prática é imediata, e além disso existe o potencial de o próprio estudo curar algumas centenas de mulheres que dele participarem, se tudo der certo. O dinheiro vai servir em grande parte para pagar voluntários humanos. Os medicamentos serão fornecidos de graça por uma indústria farmacêutica.

Um dilema, não é mesmo? Todas as pesquisas acima são importantes: algumas apenas para entender melhor o mundo em que vivemos, outras para melhorar o nosso bem-estar e saúde. Muitas pessoas, na pele do tal diretor, dariam o dinheiro para a terceira pesquisa, pois tem mais aplicações práticas e é a que sem dúvida beneficiaria mais diretamente seres humanos. Outras pessoas argumentariam que não existe pesquisa aplicada sem a pesquisa pura e desinteressada, e que portanto teríamos que dar o dinheiro para uma delas. Finalmente, existiriam sempre os "salomônicos", que não hesitariam em dividir o dinheiro em três partes, dando um pouco para cada uma.

O governo federal parece que não está sofrendo nem um pouco com esses dilemas. Em conseqüência da atual crise financeira, está sendo realizado um corte linear nos auxílios a todas as pesquisas. O dinheiro até que existe, mas o governo realizou um "contingenciamento" das verbas, ou seja, recolheu o que estava sobrando ao Tesouro (inclusive o dinheiro das rendas próprias das universidades, como taxas de vestibulares, cursos de extensão e serviços tecnológicos prestados), e deixou de liberar o que ainda não tinha sido gasto, o que é simplesmente revoltante. As universidades e centros que gerenciaram bem e criteriosamente suas verbas foram punidos, os que torraram tudo antes do ano acabar, com a esperança de conseguir verbas adicionais, foram beneficiados. Que belo exemplo o governo está dando para os diretores das unidades! De novo, se você fosse um deles, como gastaria as verbas o ano que vem?

É um baque terrível para a ciência e a educação nacional. Somos sempre o famoso "sacrificial lamb", ou o bode expiatório, em bom português. Ou seja, a partir dos desmandos financeiros abismais do poder público, neste e em governos passados, da incompetência, do descaso e da corrupção, e ainda dos interesses de um bando de especuladores internacionais desprovidos de outros compromissos que não sejam a rentabilidade máxima de seus patrimônios; estamos literalmente "pagando o pato", expiando essas culpas todas, que não são nossas. Entra governo, sai governo, quando tem que cortar, são os setores mais indefesos que saem perdendo. Um PROER de bilhões de dólares para salvar a pele dos tais especuladores e corruptos (algum dono dos bancos que faliram foi preso?) é mais importante do que o futuro da nação, dos seus jovens, e da capacidade científica e tecnológica.

Nossos governantes sempre se esquecem, providencialmente, de que a grandeza atual do Brasil, e muito do respeito que suas façanhas técnicas e pujança industrial evocam, vem da qualidade desses mesmos centros universitários e de pesquisas que estão sendo asfixiados em troca da economia de alguns caraminguás (o financiamento de todo o sistema de ciência e tecnologia brasileiro, com mais de 20 mil cientistas e professores, custa menos do que um mês de juros da dívida pública, e o que o governo vai economizar com esses cortes equivale a menos de uma semana de juros…).

Enquanto ciência e educação forem considerados como artigos de luxo, investimentos descartáveis a qualquer sinal de crise, não teremos futuro.


Correio PopularPublicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 7/11/98.

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