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Porque só o Titanic ?

Renato Sabbatini

A história do progresso da engenharia naval está coalhada de insucessos catastróficos e de cadáveres de passageiros inocentes. "Titanic", um dos mais espetaculares filmes de catástrofe dos últimos anos, descreve de forma fascinante e muito bem feita aquele que foi um dos afundamentos que mais cativou a atenção do público ao longo do século. Um absurdo acúmulo de erros (alguns deles retratados no filme, mas não todos) foi responsável pela tragédia em alto mar do maior navio de passageiros da época, de propriedade da White Star Line, levando à morte mais de 1.500 passageiros e tripulantes nas águas geladas do Atlântico Norte, em 15 de abril de 1912.

No entanto, uma coisa que eu sempre me pergunto a respeito dessa verdadeira mania e fascínio quase mórbido com relação ao "Titanic" (e eu não me excluo !), é porque apenas com ele, quando existiram desastres navais comparativamente muito maiores e mais trágicos ? Teriam sido as circunstâncias que o cercaram, tais como o fato de ser a sua primeira viagem, ou estar cheio de gente rica, inclusive o dono da White Star, ou ainda porque tenha sido declarado "insubmersível" pelos seus construtores ?

Pouca gente sabe, no entanto que o "Titanic" teve dois "irmãos" de igual tamanho, o "Britannic" e o "Olympic", construídos logo em seguida pelo mesmo estaleiro, Harland & Wolff, de Belfast. Devido ao afundamento do "Titanic", a White Star ordenou que ambos fossem extensamente modificados, de modo a assegurar maior resistência contra colisões. No entanto, nada disso impediu que o "Britannic" afundasse em 21 de novembro de 1916, no Mar Egeu, apenas dois anos depois de construído, quando servia como navio-hospital britânico durante a I Guerra Mundial. Era a sua quinta viagem, quando aparentemente colidiu com uma mina, afundando em 55 minutos. Felizmente, morreram apenas 30 pessoas entre as 1.100 a bordo. Recentemente, Robert Ballard, o cientista que descobriu e explorou no fundo do mar os destroços do "Titanic", fez o mesmo em relação ao "Britannic" (Jacques Cousteau tinha descoberto o navio em 1976). Já o "Olympic" nunca afundou, mas teve três colisões importantes com outros navios, uma delas com perda de vidas. Resistiu melhor, pois seu casco tinha recebido um grande número de modificações de reforço.

Outros afundamentos de proporções a meu ver muito mais trágicas do que o do "Titanic" ocorreram na mesma década, com enorme perda de vidas. O mais conhecido é o do "Lusitania", o maior navio da Cunard, uma linha concorrente da White Star no Atlântico Norte. Ele afundou ao largo da costa da Irlanda em 7 de maio de 1915, torpedeado pelo submarino alemão U-20, tendo perecido 1.198 pessoas das 1.959 a bordo. Tão grande e rápido quanto o "Titanic" ele tinha zarpado de Nova Iorque, carregando, sem que os passageiros soubessem, uma carga de 180 toneladas de armas e munição de guerra. Tendo sabido através de seus espiões nos EUA que a Inglaterra tinha cometido esse erro (utilizado uma embarcação de passageiros para transportar armas), o governo alemão publicou anúncios nos jornais americanos alertando que o "Lusitania" poderia ser torpedeado em ato legítimo de guerra, se fosse encontrado pelas matilhas de submarinos alemães. O aviso foi ignorado, pois ninguém achava que a Alemanha teria coragem de fazer isso.

Ao chegar próximo à costa da Irlanda, o comando naval britânico alertou o capitão do "Lusitania" por rádio que havia submarinos alemães na área, e recomendou curso em zigue-zague. O capitão ignorou o conselho e continuou a toda velocidade, no que foi torpedeado às 2 horas da tarde. Em outra inacreditável sucessão de erros, o capitão não mandou evacuar o navio e tentou levá-lo até a costa. Uma explosão secundária numa das turbinas, no entanto, afundou o navio em apenas 20 minutos. Poucos escaleres foram abaixados (o navio virou de lado) e a maioria afundou também. O acidente indignou o público dos EUA (morreram 128 americanos) e foi um dos estopins da entrada no país na guerra contra a Alemanha.

Também poderíamos citar o afundamento do navio de passageiros canadense "Empress of Ireland", em 29 de maio de 1914, na foz do rio São Lourenço, por colisão com outro navio, e que provocou a morte de 1.104 passageiros. Esse desastre deve ter sido tão trágico como o que foi relatado no filme. Aqui no Brasil, o afundamento do "Príncipe de Astúrias" em 6 de março de 1916, um grande transatlântico espanhol que colidiu com rochas na Ponta de Pirabura, em Ilha Bela, no litoral paulista, também foi um dos grandes desastres esquecidos da história. Ele foi conseqüência de vários erros humanos, e afundou em poucos minutos, causando 477 vítimas fatais.

A grande incidência de afundamentos catastróficos como estes no começo do século foi devido a uma espécie de dessincronização tecnológica. Os grandes estaleiros navais tinham avançado tanto a engenharia de construção, que eram capazes de produzir gigantes de 50.000 toneladas, de grande velocidade e enorme número de passageiros, que singravam a rota entre a Inglaterra e os EUA em apenas 100 horas. No entanto, não existia sonar, radar ou qualquer outro meio de detectar obstáculos à frente do navio, e o uso do rádio ainda era primitivo. Também não existiam normas de segurança e proteção dos passageiros (o "Titanic" tinha lugar nos escaleres apenas para metade das pessoas a bordo).. O resultado não podia ser outro. Avançando a alta velocidade, no meio da noite, em rotas marítimas extremamente freqüentadas, no meio do nevoeiro muito comum na maior parte do ano, e em campo de icebergs, o cenário era de extremo risco. Morreu muita gente, que já foi esquecida.

Mas o pior mesmo é a barbárie da guerra contra civis, tão injustificada e cruel, exemplificada pelo "Lusitania". Foi o embate de tecnologia contra tecnologia, com frágeis seres humanos no meio.


Correio PopularPublicado em: Jornal Correio Popular, Campinas 10/4/98.

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