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O dilúvio universal aconteceu?

Renato Sabbatini

Quase todas as culturas humanas têm em sua mitologia alguma história sobre um dilúvio na origem dos tempos, no qual quase toda a humanidade perece, e uns poucos se salvam. Na Biblia, é Noé, sua arca e os casais de animais que salvou por ordem de Deus. É uma história extremamente parecida com o épico de Gilgamesh, dos antigos babilônios, e no qual provavelmente se baseou, segundo os historiadores. Nesta narrativa, Noé é Utnapishtim, que foi avisado por Enki, rei das águas e construiu um barco, salvando família, amigos, animais, artesãos e metais preciosos. Os gregos e romanos antigos também tinham a lenda de Deucalião e Pirra, que salvaram seus filhos e animais a bordo de um navio na forma de uma caixa. Muitas tribos de índios das Américas também tem lendas semelhantes em suas histórias, todas impressionantemente parecidas umas com as outras.
 
O que significa isso? Os etnólogos e antropólogos acham que essas lendas e mitos similares podem refletir duas coisas, ambas sem provas definitivas que são verdadeiras: a primeira é que elas seriam "invenções" independentes, que simbolizam o renascimento da vida depois da chuva. A segunda é que provavelmente elas se originaram a partir de acontecimentos verdadeiros, ocorridos em passado muito distante, e que se propagaram através da história oral pelos vários povos que migraram para todos os cantos da Terra.

Uma das primeiras teorias nesse sentido se motivaram no fato de que a maioria das civilizações urbanas se originaram na Mesopotâmia, terra situada entre dois rios, o Tigre e o Eufrates, e que portanto é sujeita a inundações freqüentes. Há cerca de 6.000 anos atrás, uma gigantesca e destrutiva inundação teria superado todas as demais, e ficado marcada no consciente histórico. Existem algumas evidências arqueológicas de que essa inundação realmente ocorreu: alguns sítios arqueológicos da antiga Suméria apresentam uma camada extremamente espessa de argila de aluvião, semelhante à que é depositada por inundações muito longas. Como a escrita foi desenvolvida cerca de mil anos depois, pelos próprios sumérios, a história acabou sendo registrada em épicos como o de Gilgamesh. Os semitas, descendentes desses povos, preservaram-na no Antigo Testamento.

Dois geólogos da Universidade Columbia (EUA), William Ryan e Walter Pitman, propuserem em 1995 uma outra teoria. Eles acharam evidências de que houve uma gigantesca inundação de água do mar, formando o que hoje é o Mar Negro, há cerca de 7.100 anos atrás. Essas evidências mostram que havia uma barreira de terra entre o Mediterrâneo e o Mar Negro, que não se comunicavam. O Mar Negro era um lago relativamenteo pequeno de água doce. Com o início do degelo e o fim da Era Glacial, cerca de 12.000 anos AC, o Mediterrâneo começou a subir de nível, até romper catastroficamente barreira com o Mar Negro, no que hoje é o Estreito de Bósforo, e invadir uma área imensa, equivalente ao estado da Flórida. O volume de água por minuto seria equivalente a 200 cataratas do Niágara, elevando o nível do Mar Negro em 15 cm por dia. Centenas ou milhares de povoados foram submersos, e bilhões de formas de vida pereceram. Uma inundação deste tamanho certamente poderia ser interpretada como o Dilúvio Universal, pois em alguns pontos a água subiu em até 150 metros.

Até recentemente, não haviam evidências arquelógicas sobre o que aconteceu com os habitantes da área inundada, mesmo porque a exploração submarina do Mar Negro é muito difícil (como diz o nome, as águas são escuras, devido a sedimentos trazidos por grandes rios). Entra em cena, então, o famoso geólogo e explorador Robert Ballard. Foi ele o primeiro a utilizar intensamente submarinos-robôs para investigar o mar a grandes profundidades. Assim, descobriu os restos de navios afundados famosos, como o Titanic e o Britannia, o encouraçado alemão Bismarck e as naves de guerra da Batalha de Midway. Ballard, financiado pela poderosa e rica National Geographic Society, explorou em 1999 a região do Mar Negro, em busca de indícios de habitação humana. O primeiro achado foi muito interessante e corroborou a teoria de Ryan e Pitman: fósseis de mariscos de água doce no fundo do Mar Negro, datados de 7.000 anos atrás, foram substituidos bruscamente por mariscos de água salgada, exatamente na época em que o evento geológico teria ocorrido no Bósforo. O segundo achado foi mais impressionante: restos de construções humanas de madeira, à profundidade de 100 metros, e de uma costa arenosa, à profundidade de 30 metros, vários quilômetros de distância da atual costa do Mar Negro.

Paradoxalmente, quem não gostou muito da descoberta foram os fundamentalistas biblicos. Eles não concordam com a sugestão de Ballard que esta inundação tenha sido a que a Bíblia conta! Primeiro, porque a Bíblia diz que ela ocorreu em todo o mundo, e não apenas em uma região localizada. Segundo, porque o Monte Ararat, onde supostamente a Arca pousou ao terminar o Dílúvio, fica muito longe do Mar Negro. Terceiro, porque segundo a cronologia da Bíblia, este evento teria ocorrido 2.000 anos depois da inundação do Mar Negro (não me pergunte como eles calcularam isso…). Os teólogos não fundamentalistas, por sua vez, também não gostaram da sugestão de Ballard, pois, para eles, o Dilúvio é apenas uma lenda simbólica e não deve ter ocorrido de verdade. Por outro lado, Ballard até agora foi incapaz de descobrir novas evidências arqueológicas de peso. Quem será que tem razão?
 


Correio PopularPublicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 2/3/2001 .

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