Truman, show da vida

Correio Popular, Campinas, 11 nov. 1998, Opinião, p. 3.

Está em cartaz nos cinemas brasileiros uma fábula sobre a vida moderna chamada "Truman Show - O Show da Vida". Trata-se da estória de Truman Burbank, um típico cidadão norte-americano que tem sua vida transmitida pela TV vinte e quatro horas por dia. A ilha em que mora, a família, os amigos, toda sua realidade é um grande cenário de televisão. O filme é uma alegoria de como os meios de comunicação de massa e o acompanhante comercialismo pode invadir, influenciar e mesmo determinar a vida das pessoas comuns. O enredo da estória não é totalmente novo, porém. Nos Estados Unidos, uma universitária chamada Jenni, abriu a mão de sua privacidade, instalou webcams (câmaras que transmitem imagens para a Internet) em seu apartamento e mostrou seu dia-a-dia para o mundo inteiro. Como o show de Truman da ficção, o site (http://www.jennicam.org/) foi um absoluto sucesso, gerando uma verdadeira onda de webcams e mostrando que as pessoas realmente inclinações voyeurísticas. Ao contrário do Truman Show, a JenniCam mostra tudo mesmo. "Meu site contém material sexual de vez em quando. A vida real contém material sexual.", diz Jenni. Curiosamente, agora ela também apresenta um show ao vivo pela Internet, o JenniShow (coincidência?).

Uma frase dita no filme, porém, alerta e chama a atenção. Somente a tecnologia possibilitou o Truman Show. Cinco mil câmaras espalhadas pela surpreendente cidade/estúdio e um avançado sistema de controle possibilitaram a transmissão de todos os eventos da vida de Truman, desde o momento em que era um embrião no útero de sua mãe. E se um projeto deste porte hoje pareça inverossímil, devemos lembrar que uma tecnologia que levou apenas 5 anos para atingir 1 bilhão de usuários, em todo mundo, possibilitando de certo modo, 1 bilhão de câmaras de vigilância. Estamos falando da Internet, que poderá no futuro representar uma grande ameaça à individualidade e à liberdade pessoal de informação.

Atualmente podem ser identificadas duas vertentes de uso da Internet que teoricamente poderão ser utilizadas de forma nociva à privacidade. A primeira é o rastreamento de usuários, tecnicamente realizado de várias formas, que pode dar informações de quando, quais e por quanto tempo um usuário acessou uma determinada página da Internet. Embora para os provedores de informação estas informações constituam uma base de dados valiosa para a avaliação dos serviços prestados, o potencial de vigilância sobre o indivíduo é considerável. A segunda vertente se apresenta na forma de tecnologias de personalização, utilizadas por sites de comércio eletrônico e portais (sites que condensam informações e serviços ao usuário). A personalização promete entregar ao usuário a informação que ele deseja; um comprador ao entrar em uma loja virtual encontra produtos que mais se aproximem a seu perfil de compras, outro usuário encontra no portal destacadas notícias que lhe interessam. Tais tecnologias são baseadas em um princípio de vigilância, isto é, analisam os padrões de navegação e compra utilizadas por uma pessoa e a partir disso, montam um perfil de uso. Novamente, o risco à individualidade e à anomidade estão presentes.

Porém engana-se aquele que pensa que a vigilância seja um produto típico da Internet. Podemos relacionar os casos acima com uma diversidade de meios de controle existentes no nosso mundo bastante real. Companhias de cartão de crédito conhecem seu perfil de consumo e vendem esta informação para empresas de marketing direto. Os governos de todo o mundo são baseados em máquinas burocráticas, que acumulam praticamente todas as informações da vida de um indivíduo.

Vigilância e controle não são frutos da tecnologia. É indubitável porém que ela seja uma facilitadora, além de proporcionar outros problemas. Somente na Internet, podemos citar o exemplo da contra-informação, da universalização de informações perigosas (pornografia, terrorismo), da proteção do direito autoral, da segurança de sistemas. São estes motivos que tornam imperioso uma grande e generalizada discussão sobre os rumos que a tecnologia da Internet deverá tomar. A comunidade acadêmica, as empresas líderes na área de informática, os provedores de informação, os comerciantes eletrônicos, as entidades governamentais e representantes da sociedade civil devem unir esforços para que a proteção ao indivíduo e à liberdade de informação seja reforçados e continuados nos anos futuros. Nesse sentido, já surgem organizações de proteção, como a Electronic Frontier Foundation (http://www.eff.org), o Center for Democracy and Technologty (http://www.cdt.org) e o Electronic Privacy Center (http://www.epic.org) batalhando pela conservação da anominidade no ciberespaço. Também surgem propostas de estabelecimentos de padrões a serem adotados no comércio eletrônico e sites de personalização, como o P3P (Plataform for Privacy Prefences Project, Projeto de Plataforma para Preferências Privadas) que está sendo desenvolvido pelo W3C (World Wide Web Consortium, http://www.w3.org/), a entidade que regulamenta a maioria dos padrões na Internet. Outra iniciativa a ser adotada ainda é o estabelecimento de uma organização independente de auditoria das práticas utilizadas por sites. O Brasil, como um país emergente na Internet mundial, deveria tomar voz ativa no debate, embora na prática ainda sejam poucas as iniciativas observadas. Somente através de todas estas medidas a Internet deixará de ser um risco e poderá assumir sua função original de provedora universal, democrática e instantânea de informação.


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