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Medicina natural

 

Renato Sabbatini

Um levantamento recente feito no Brasil indicou que cerca de 60% da população brasileira utiliza remédios "naturais", ou seja, baseados em conceitos de medicina alternativa (homeopatia, florais de Bach) ou fitoterápica (produtos de origem vegetal, como ervas medicinais). Mas isso não parece ser fruto do estado de desenvolvimento social e econômico de um país, pois, na realidade, EUA e Alemanha (para citar dois exemplos), têm números similares. Mais ainda: a tendência de utilização dessas abordagens terapêuticas pela população mostra uma franca ascenção: já é um mercado mundial com um valor superior a 60 bilhões de dólares.

Existem princípios farmacológicos ativos nas plantas? Sem dúvida nenhuma. Tanto é assim que muitos dos medicamentos clássicos da medicina, como a reserpina, o curare, o ácido acetilsalicílico (AAS), etc., foram descobertos a partir da ação conhecida de certas plantas, e posteriormente identificados, extraídos e, eventualmente, sintetizados pelos químicos orgânicos. O AAS é um ótimo exemplo: presente em grandes quantidades na casca de uma árvore, o salgueiro, que é utilizado na Europa há centenas de anos para fazer chás para tratar febres e dores, deu origem à famosa aspirina, desenvolvido pela empresa alemã Bayer no século passado. Até hoje, continua sendo o medicamento mais utilizado. Outras substâncias altamente tóxicas, extraídos de plantas e animais venenosos, mais tarde se revelaram ter ação farmacológica muito poderosa e específica. A descoberta mais recente (e aprovada para comercialização pela rigorosa FDA) foi o taxol, usado como quimioterápico no tratamento de tumores, e que está presente na casca de uma árvore, o teixo.

Atualmente, as mais poderosas indústrias farmacêuticas do planeta estão investindo muito dinheiro na tentativa de descobrir novas moléculas de valor terapêutico a partir da riquissima biodiversidade presente nas florestas tropicais, como a existente na região amazônica. As estratégias adotadas são múltiplas. Uma delas consiste em realizar uma enorme bateria de testes padronizados em animais, usando extratos de milhares de plantas. Mas esse método demora muito tempo, custa demais, e tem resultados bastante decepcionantes. Assim, para aumentar um pouco a especificidade, algumas empresas têm recorrido à etnobotânica, ou seja, descobrir entre os povos primitivos da floresta que plantas eles utilizam para combater determinadas doenças, e testar essas plantas primeiro. A produtividade é muito maior, pois se genéticas, que funcionam da seguinte maneira: os genes responsáveis pela fabricação de drogas conhecidas no interior das células de seres vivos, são identificados, e o segmento de DNA aos quais correspondem é isolado e seqüenciado. Em seguida, esses segmentos, sintetizados e ampliados através de métodos bioquímicos são "colados" em membranas biológicas artificiais (pedaços finíssimos de tecido, formado de um "sanduíche" de proteínas e lipídios). Milhares de genes diferentes podem dessa forma serem colados em um centimetro quadrado de membrana. Em seguida, o produto biológico que se quer testar é triturado, homegeneizado e diluído, e a membrana com sondas de DNA é imersa no mesmo. Caso existam genes similares aos presos na membrana, nessa amostra, eles se acoplarão e poderão ser identificados através de técnicas usando marcadores fluorescentes. Desse modo, milhares de plantas e de genes podem ser descobertos rapidamente.

Nem tudo na farmacologia natural oriunda de conhecimentos populares, no entanto, tem efeitos comprovados cientificamente. Alguns dos princípios mais badalados da botica popular, como as indefectíveis pílulas de alho para o tratamento de colesterol alto, não têm qualquer efeito comprovado, embora continuem a ser consumidos em quantidades astronômicas.

Em 1998 foram realizados dois grandes estudos clínicos de altissima qualidade, usando a técnica de controle duplo-cego (os pacientes com colesterol alto são divididos em dois grupos: uns tomaram a preparação com óleo de alho e outros tomaram placebo: tanto os pacientes quanto os médicos que os trataram não sabiam quem tomava o que). A primeira pesquisa foi feita no Departamento de Farmacologia Clínica da Universidade de Bonn, na Alemanha, e o segundo no Centro de Pesquisa Cardiovascular do Christ Hospital, de Cincinnati, EUA. Ambos foram publicados em duas revistas, Journal of the American Medical Association (JAMA) e Archives of Internal Medicine (AIM), que estão entre as cinco melhores e mais rigorosas do mundo. A metodologia de pesquisa utilizada pelos dois trabalhos foi semelhante: foram usados tabletes de pó de alho ou cápsulas de óleo de alho, três vezes por dia às refeições. O resultado foi esmagador, e definitivo, coincidindo para as duas pesquisas: não existe qualquer efeito do alho sobre os níveis de triglicerídeos, colesterol LDL e HDL. O grupo alemão também determinou que o alho não afeta a absorção intestinal nem a síntese orgânica do colesterol. Como resultado, os pesquisadores e diversas associações profissionais médicas chegaram à conclusão que não se deve recomendar o alho como terapia para colesterol elevado.

No mundo comercial, no entanto, nada mudou, como sempre: as farmácias continuam a vender as preparações comerciais de óleo e pó de alho, as pessoas continuam a comprar como se o efeito fosse verdadeiro, e até alguns médicos mal-informados continuam a receitar ou recomendar o produto.

Se é muito importante não termos preconceito contra os princípios terapêuticos naturais, também deve-se recomendar cautela a respeito de alegações de eficácia de remédios caseiros e baseados em plantas. O fator diferenciador deve ser sempre a existência de evidências científicas incontestáveis, obtidas através da metodologia de mais alta qualidade.

A flora brasileira, com sua fabulosa biodiversidade, é riquissima em plantas medicinais que re artemísia (pesquisada pela UNICAMP para tratamento da malária), a candeias (originária do cerrado, contra a úlcera duodenal), a sucupira (anti-inflamatória) e a camapu (usada contra hepatite, malária e leishmaniose). A indústria farmacêutica baseada em fitoterápicos está crescendo muito em todo o mundo, sendo que os alemães foram os pioneiros na exploração econômica de alta qualidade de princípios de plantas. Um ativante circulatório e potenciador do metabolismo celular, o ginkgo biloba (vendido no Brasil em várias marcas, como o Teboni), foi extraído de uma planta oriental do mesmo nome, e vende milhões de dólares em todo o mundo. É usado para tratar derrame, isquemia cerebral, doenças do sistema vestibular, como labirintite, etc. Uma indústria alemã, a Byk, também presente no Brasil, tem uma linha de produtos naturais de eficácia comprovada, como a kawa-kawa (usada para tratar ansiedade). Os alemães também foram os primeiros a comprovar a eficácia do hipérico (Erva de São João) no tratamento da depressão leve, e que já se sabe que age no cérebro através dos neurotransmissores envolvidos no processamento das emoções. Tem a vantagem de ter poucos efeitos colaterais, como os antidepressivos mais usados pela medicina convencional.

Tudo isso é muito bonito, mas existe uma coisa que todos precisam saber: "natural" não é sinônimo de "bom". São muitos os perigos que cercam o uso indiscriminado e sem receita de medicamentos e preparados baseados em plantas medicinais. Lesões, doenças, e até a morte, podem ser provocados por muitos produtos fitoterápicos naturais. Aliás, muitas das drogas mais tóxicas existentes na farmacologia convencional vêm de plantas que antigamente eram usadas para envenenar pessoas, por serem muito tóxicas, ou que se sabia que matavam animais domésticos, ao serem ingeridas acidentalmente. É o caso de um grupo de substâncias genericamente denominadas de alcalóides, que incluem a escopolamina (tirada da Datura estramonium), a atropina (presente na beladona, chamada assim pois era usada para dilatar as pupilas das mulheres, aumentando sua beleza), ergotamina (extraída de um fungo), reserpina, e outras. Muitas das substâncias que induzem vício ou abuso também são alcalóides, podendo matar dependendo da dose, como a cocaína (extraída da coca), a morfina e a heroína (da papoula), a cafeína (do café), a nicotina (do tabaco) e a efedrina. O curare e a estricnina, dois venenos fortissimos (usados pelos índios para envenenar a ponta das flechas), também provêm de plantas.

Outras plantas aparentemente benéficas e muito usadas na medicina popular também são perigosas. A losna, por exemplo, indicada contra males do fígado, pode causar malformações fetais e convulsões. O confrei, usado para fazer chás, e que ficou na moda na década dos 80s, causa lesões renais. As folhas do pessegueiro contêm a amigdalina, um glicosídeo altamente tóxico, pois gera ácido cianídrico ao ser hidrolisado no organismo, e que é um dos venenos mais poderosos, pois inibe a a respiração celular ocasionando anóxia. A bela flor da dedaleira (Digitalis purpurea), que contém digitalis, medicamento muito utilizado para aumentar a força da contração do coração em pacientes com insuficiência cardíaca, é muito perigosa, pois estes glicosídeos possuem dose terapêutica próxima à dose tóxica. As lactoresinas, prese submetida ao processamento químico para extração dos princípios ativos, o agrotóxico se concentra milhares de vezes, podendo matar o usuário ou causar sérios problemas de saúde. Outro perigo é a presença de agentes exobióticos, como bactérias (Shigella e Salmonella, que causam infecções gastrointestinais fortissimas e podem matar crianças e velhos) e fungos.

E aqui, dou um exemplo final de como as plantas mais conhecidas podem ser uma "faca de dois gumes". Recentemente constatou-se que o amendoim tem rico conteúdo do mesmo princípio ativo, o resveratrol, que também está presente nas uvas. É ele que confere ao vinho tinto e ao suco de uvas o poder benéfico de prevenção de aterosclerose, derrames cerebrais e ataques cardíacos visto na população mediterrânea. Aparentemente, também, tem um efeito protetor contra vários tipos de câncer. No entanto, o amendoim mal armazenado é infectado por um tipo de fungo (Aspergillus flavus) que gera uma das substâncias mais carcinogênicas conhecidas da ciência, a aflatoxina. Ela pode causar câncer do figado em concentrações tão baixas quanto 100 partes por bilhão!
 

Para Saber Mais

 

 

Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 22 e 29/11/99.

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