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Medicídio e o "Doutor Morte"

 

Renato Sabbatini

A condenação do Dr. Jack Kevorkian, alcunhado de "Doutor Morte" pela imprensa, a uma pena de 10 a 20 anos por um tribunal de júri no estado de Michigan nessa semana, colocou na berlinda novamente os dilemas da morte com dignidade em casos de doença terminal, o suicídio assistido por médico, e a eutanásia.

Kevorkian é um médico americano já idoso, que ficou famoso pelas cerca de 130 pessoas que ajudou a se suicidar, utilizando um dispositivo controlado pelo próprio paciente, que inicia a injeção de um coquetel de medicamentos letais ou o fluxo de monóxido de carbono em uma máscara buconasal. Kevorkian denominou o primeiro aparelho de "Thanatron" (de thanatos, morte, em grego), e o segundo, de "Mercytron" (de mercy, misericórdia, em inglês); demonstrando uma excelente vocação mercadológica. Até agora nenhuma empresa se prontificou a produzi-los em massa, apesar de certamente haver um mercado significativo (no Japão, na Holanda, na Colômbia, e no estado americano de Oregon, existem leis que permitem o "medicídio", que é o termo criado pelo Dr. Kevorkian para o suicídio assistido por médicos).

A questão do suicídio, assistido ou não, é complexa e coloca em cena muitas opiniões carregadas de emoção, que dependem muito da religiosidade da pessoa, de suas convicções morais e racionais. Basicamente é uma questão de escolha pessoal, mas há muito tempo o Estado se arvora no direito de regulá-las, com o intuito de preservar a sociedade. Por exemplo, os antigos gregos consideravam o suicídio e a eutanásia plenamente aceitáveis. Já a Igreja Católica repele totalmente essas formas de escolha individual (assim como várias outras, como a anticoncepção, o aborto e a orientação sexual), pois considera que elas contrariam a vontade de Deus. O suicídio é pecado, assim como todas as formas de morte não naturais. Outras religiões cristãs aceitam o suicídio e não o consideram pecado. Em alguns países, o suicídio é ilegal, e quem ajudá-lo é indiciado como acessório de homicídio culposo. Em outros, é plenamente legal e considerado um direito inalienável do indivíduo.

Como vemos, portanto, não existem posições certas ou erradas "a priori" a respeito do assunto. Esse relativismo nas sociedades laicas (não dominadas por uma religião) tem incentivado a mudança gradativa das leis, e isso está começando a acontecer na área da eutanásia médica. Apesar do aspecto sinistro de suas atividades, o Dr. Kevorkian, sem dúvida, tem o mérito de iniciar o seu amplo debate nos EUA e em várias outras partes do mundo.

Aliás, existe muita confusão a respeito do termo "eutanásia". Sua etimologia vem do grego: "eu" significa boa, normal, e "thanatos", morte. Portanto, seria a "boa morte", uma morte considerada desejável, por alguém ou pela sociedade. Existe a eutanásia passiva (muito praticada atualmente, inclusive no Brasil, embora os médicos não gostem de falar sobre isso), na qual um paciente terminal, por exemplo, tem suspenso o uso de medicamentos, de aparelhos de manutenção artificial da vida, ou até de alimento, para apressar a morte considerada inevitável e abreviar o sofrimento. Geralmente isso ocorre por pedido da família, uma vez que doentes nessa condição estão no chamado "estado vegetativo persistente", inconscientes e incapazes de tomar uma decisão. A maioria das UTIs têm orientações impressas sobre o que eles chamam de "ordem de não ressuscitar".

Na eutanásia ativa voluntária, por outro lado, geralmente a pessoa assume a decisão de terminar sua vida, devido à queda insuportável da qualidade de vida, dor intratável, ou terminalidade de uma doença, como câncer, AIDS, síndromes de degeneração nervosa e muscular, Alzheimer, etc.  Nesse caso, a lei a considera suicídio. A eutanásia ativa involuntária, que foi praticada pelos nazistas durante o Terceiro Reich para eliminar deficientes físicos e mentais, indesejados sociais, idosos, incapazes e pacientes psiquiátricos, é uma forma de assassinato, e é repudiada por todos os povos civilizados. Por usar o mesmo nome, traz associações terríveis com as outras formas de eutanásia voluntária.

O medicídio, ou suicídio assistido pelo médico, é uma forma de eutanásia voluntária ativa. Algumas pessoas sugeriram criar o verbo "kevorkiar" para essa ação, em uma homenagem duvidosa ao seu proponente de maior proeminência. Ele consiste em dar meios médicos rápidos e eficazes, sem sofrimento, para que o próprio paciente termine a sua vida. Na Holanda, ela é praticada há vários anos, tendo sido aprovada social e legalmente em função da campanha de um "Dr. Morte" holandês, o Dr. Admiraal.  A lei delimita e regulamenta severamente as condições em que esse ato médico pode ser praticado.

A maioria das sociedades médicas e médicos individuais, entretanto, condena o medicídio, pois envolve o profissional em uma atividade totalmente contrária àquela para qual ele foi treinado, que é a de salvar vidas, e não de matar. Tecnicamente, o medicídio não oferece problemas, mas muitas vezes existe o dilema (que levou à condenação do Dr. Kevorkian), do paciente não poder cooperar ou dar início ao ato letal. É o caso do paciente envolvido no processo, o qual tinha uma forma extremamente severa de síndrome amiotrófica (chamada de Síndrome de Lou Gehrig, nos Estados Unidos, por ter matado, na década dos 40, um famoso jogador de basebol com esse nome. Por acaso, é a mesma doença que acomete, de forma mais branda, um dos maiores gênios científicos da atualidade, o físico inglês Stephen Hawking), e que praticamente não conseguia mexer mais nenhum músculo do corpo. Impaciente, e desejoso de testar os limites da lei, como ele mesmo afirmou, o Dr. Kevorkian realizou pela primeira vez uma eutanásia ativa, tendo, inclusive, filmado o procedimento, que foi exibido dois meses depois no programa nacional "60 Minutes",

O grande problema da adoção legal do medicídio é de como, e se é possível limitá-la. As organizações pró-vida (as mesmas que são contra o aborto) costumam levantar cenários horripilantes de esquadrões da morte que percorrerão os asilos e hospitais, eliminando doentes e velhos indesejáveis. A esse respeito, dois respeitados psiquiatras americanos, Drs. Abraham Halpern e Albert Freedman, ex-presidentes da Associação Americana de Psiquiatria, escreveram em um artigo contra a eutanásia no New York Times dizendo: "Eventualmente nós estaremos matando aqueles que não estão doentes, aqueles que não pediram para morrer, aqueles que são jovens ou estão deprimidos, aqueles que alguém considera que têm uma qualidade de vida ruim, e aqueles que acham que "não incomodar mais" é sua obrigação.

Infelizmente pode se tornar verdade, particularmente em países com governos ditatoriais. Não vejo perigo disso em países democráticos, mas o fato é que uma jornalista americana detectou uma perturbadora tendência nos medicídios do Dr. Kevorkian: inicialmente ele ajudava apenas doentes terminais de sexo masculino. Posteriormente, começou a ajudar o suicídio de mulheres, algumas delas simplesmente deprimidas ou em estado inicial de Alzheimer, mas que queriam se matar porque não queriam ser uma "carga" para seus parentes. Finalmente, acabou realizando ele mesmo uma eutanásia ativa.

É de se pensar…
 

Para Saber Mais


 
 Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 16/4/1999.

Autor: Email: renato@sabbatini.com

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