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Falsificações, FDA e o Ministro

 

Renato Sabbatini


Na onda de denúncias horripilantes sobre a pouca-vergonha nacional na área de falsificação e fraudes com medicamentos, reacendeu-se uma antiga reinvidicação dos profissionais envolvidos com a saúde pública no Brasil: a criação de uma agência federal autônoma, com amplos poderes legais para fiscalizar a indústria farmacêutica e agir efetivamente para proteger a saúde do consumidor. Os órgãos que se prestam a esse papel no Brasil, entre as quais a Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde, são muito ineficientes e cheias de defeitos e vícios de origem e de percurso. Basta ver a última piada da semana: 40 fiscais da Vigilância também eram donos de farmácia ! "Descobriram" isso subitamente ? Claro que não: isso é conhecido de todos, inclusive do próprio Ministério, há muito tempo. É o clássico caso das raposas tomando conta das galinhas...

O mesmo acontece com o caótico mercado farmacêutico no Brasil, um dos maiores do mundo. Na realidade, ninguém quer que ele seja bem regulamentado. As próprias indústrias farmacêuticas sempre exerceram fortissimo "lobby" em Brasilía para limitar o máximo possível a ação desses órgãos e impedir legislações mais duras pelo Congresso. A Vigilância Sanitária nem sequer tem um banco de dados completo e atualizado sobre a situação dos medicamentos comercializados no Brasil ! Vejam o que aconteceu com a aberração do "caso Bezerol", um medicamento que mudou de fórmula, mas que manteve o nome, por ter sido proibido. Acho que não existe caso semelhante em nenhum outro país. Imaginem o prejuízo causado involuntariamente pelos médicos, que prescrevem o medicamento, pensando que contém a formulação original, e aos pacientes, ao comprarem "gato por lebre".

Existe, é claro, a ABIFARMA, a Associação Brasileira das Indústrias Farmacêuticas, que frente ao tiroteio que suas afiliadas estão sofrendo, resolveu tardiamente sair a campo e "esclarecer" o público. Só que, infelizmente, ela não pode fazer muito, pois também não tem critérios de seleção, como o governo, que quase nunca toma a iniciativa de fechar os laboratórios criminosos. Um amigo que é presidente de uma grande indústria farmacêutica nacional me disse que é difícil tirar alguma posiç praticamente 100 % do dia-a-dia da população, e é um gigante tão temido quanto respeitado.

Entre as atribuições da FDA está a inspeção e autorização de comercialização de alimentos, cosméticos, medicamentos, equipamentos médicos, bancos de sangue e seus produtos derivados, e produtos domésticos capazes de afetar a saúde, como fornos de micro-ondas. Cerca de 95 mil indústrias e negócios são fiscalizados por esta agência federal, ligada ao Ministério de Saúde e Recursos Humanos. As rações para animais e medicamentos veterinários também são regulamentados pela FDA, principalmente quando elas podem afetar as plantas e animais que são consumidos pela população (hormônios para aumentar o peso dos animais de corte, por exemplo, ou pesticidas usados pela agricultura). O custo dessa imensa operação, que exige cerca de 9.000 funcionários, 1.100 fiscais e 157 escritórios em todo o país, custa pouco: US$ 3 por habitante, por ano.

A FDA tem um papel duplo, que no Brasil está espalhado por vários ministérios e secretarias estaduais: ela é uma agência de protetor de consumidor, e também uma agência de vigilância sanitária, ou seja, ela tem a responsabilidade de monitorar tudo que possa afetar a saúde pública. Uma série de leis extremamente duras e efetivas, entre as quais a Federal Food, Drug and Cosmetic Act, formam a base de ação legal da FDA (é preciso notar, também, que a justiça americana é muito mais rápida e eficiente do que a nossa, o que é um fator extremamente importante para o funcionamento do sistema).

Como toda agência de vigilância sanitária, a FDA utiliza intensamente as novas tecnologias de informação, alimentando imensos bancos de dados computadorizados sobre todos os produtos que autoriza e monitora, empresas etc. Além disso tem laboratórios que analizam centenas de milhares de amostras de alimentos e remédios todo ano, com um número muito grande de cientistas e técnicos especializados (são 2.100 cientistas, que trabalham em 40 laboratórios, ou seja, 23 % dos seus funcionários !). A FDA faz um trabalho muito importante, em um mercado essencialmente livre e capitalista: ela testa se as informações dadas pelos fabricantes em suas bulas são verdadeiras. Se uma companhia é pega violando a lei, a FDA a obriga a corrigir o problema o quanto antes, mas geralmente o produto é retirado imediatamente do mercado de atacado e varejo, e a empresa é punida com pesadissimas multas e até a interdição. Muita gente vai para a cadeia por causa disso: a FDA enquadra cerca de 3 mil produtos por ano, e retém cerca de 30 mil cargas importadas nos portos, por estarem fora dos padrões.

As industrias farmacêuticas que querem introduzir novos medicamentos no mercado americano conhecem muito bem e respeitam tremendamente a FDA, exatamente o contrário que acontece no Brasil. O fabricante precisa gastar muitos anos e muitos milhões de dólares antes que a FDA libere a produção e comercialização. O Viagra é um bom exemplo: entre a descoberta científica e o início da comercialização se passaram oito anos.

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