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A cura do câncer e a mídia

Renato Sabbatini

Na edição de 3 de maio deste ano, um dos mais importantes jornais do mundo, o New York Times, publicou uma matéria de capa sobre uma "cura revolucionária" para o câncer, relatando as experiências científicas do Dr. Michael O'Reilly, do Dana Farber Research Institute, e do Dr. Judah Folkman, da Universidade Harvard, dos EUA, com duas substâncias, angiostatina e endostatina, que parecem eliminar completamente tumores cancerosos, ao cortar o seu suprimento de sangue no organismo (um fenômeno chamado anti-angiogênese). Ao crescer rapidamente, as células tumorais emitem sinais bioquímicos para o organismo, fazendo surgir uma rede de arteríolas e veias que cresce e vasculariza o tumor, permitindo assim que as células anormais se reproduzam e sobrevivam. Várias equipes científicas pesquisam há mais de 20 anos esse fenômeno, tendo publicado muitos artigos, inclusive no "Scientific American". Existem outra substâncias similares sendo testadas, como o interferon alfa, e o TNP-470, descoberto pelo Dr. Donald Ingber, também de Boston.

A matéria do NYT, como era de se imaginar, provocou um grande rebuliço, que repercutiu em todo o mundo. Todas as mídias, da imprensa à TV, reproduziram a notícia e expandiram as informações por conta própria. Um assunto que era relativamente bem conhecido na mídia científica (e de forma nenhuma unânime em reconhecimento) há muitos anos, de repente virou uma "descoberta" sensacional, que promete salvar a humanidade do espectro horrendo do câncer, uma das mais temidas doenças, e que mais mata. O mais interessante é que a comunidade financeira também reagiu imediatamente. As ações da EntreMed, uma empresa mencionada no artigo por estar desenvolvendo produtos farmacêuticos a serem comercializados no futuro, aumentaram seis vezes em valor no dia seguinte. A jornalista que escreveu a matéria, Gina Kolata, recebeu uma oferta de uma grande editora para escrever um livro sobre a "nova cura do câncer", assim como o Dr. Folkman (segundo consta, a oferta foi um adiantamento de um milhão de dólares !). Felizmente, ambos recusaram, depois de furiosas acusações de oportunismo feitas por sociedades científicas e de divulgadores, como a American Association of Science Writers, em debate pela Internet.

O problema é que, como o próprio Dr. Folkman admitiu, os fatores anti-angiogênicos funcionam apenas em ratos e camundongos, até agora. Como um cientista disse muito bem: "se você é um camundongo com câncer, nós podemos ajudá-lo. Se você é um ser humano, há alguns probleminhas…". A comunidade científica mundial gasta cerca de 2 a 3 bilhões de dólares por ano na pesquisa sobre o câncer, mas até agora o progresso tem sido gradativo, incremental, cumulativo, e nenhuma cura definitiva ou abrangente foi achada. O progresso foi fenomenal, sem dúvida, principalmente na detecção precoce e prevenção, mas também no tratamento com vários métodos. Embora a incidência de muitos tipos de câncer esteja aumentando (seios, próstata, pele), a mortalidade vem diminuindo consistentemente, ano após ano.

Assim, quando a imprensa fala de "cura", está prestando um enorme desserviço à causa da ciência e da própria população. Centenas de milhares de pessoas com câncer e seus parentes e amigos ficam desesperados cada vez que surge uma notícia irresponsável desse tipo. Tentam se agarrar à qualquer esperança, fazem de tudo para entrar como cobaias em estudos experimentais, e se revoltam quando os cientistas declaram que isso não é possível, que ainda serão necessários muitos anos para testar a angiostatina em seres humanos, determinar sua eficácia e uso seguro, e viabilizar sua produção industrial e comercialização (o Viagra, tão badalado, demorou oito anos, e custou centenas de milhões de dólares para a Pfizer, sua inventora e produtora. Por isso custa tão caro na farmácia).

Além disso, não se sabe se o medicamento será efetivo contra o câncer em seres humanos, como é em camundongos, e tudo pode resultar em nada. Um pesquisador chamou a atenção dos jornalistas, recentemente, pedindo para eles revissem as matérias anunciadas em congressos médicos de cancerologia de oito ou dez anos atrás, e dizerem quantas dessas "curas" tinham resultado em produtos viáveis. Pouquissimas ! Muitos dos trabalhos não conseguem ultrapassar os testes pré-clínicos, ou experimentais, comprovam ser muito tóxicos, ou simplesmente não são viáveis comercialmente.

Toda a humanidade anseia por uma vitória definitiva sobre esse grande e temido inimigo, o câncer. Todas as pessoas conhecem ou passaram por histórias terríveis de sofrimento, cirurgia, quimioterapia, dor e morte de parentes e amigos. Mas é preciso ter paciência. Pode parecer absurdo que a ciência já conheça tratamentos extremamente efetivos e sem efeitos colaterais, como a dupla endostatina/angiostatina, e que centenas de milhares de pessoas vão morrer em todo o mundo, com todo esse sofrimento, antes que ela comece a ser aplicada em massa. Mas a vida é assim, não é possível ser de outro jeito. Um exercício para quem se revolta contra isso: lembrem-se do desastre da talidomida (um medicamento promissor para o tratamento de grávidas, inócuo em camundongos e macacas, mas que provocou malformações fetais terríveis em dezenas de milhares de pessoas ao ser lançado comercialmente)…

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Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 12/6/98.

Autor: Email: renato@sabbatini.com

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