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Saúde na Selva

Renato Sabbatini


Esta semana estive em Manaus para dar um curso, e tive a preciosissima oportunidade de conhecer um mundo inteiramente diferente do que nós, sulistas, estamos acostumados a imaginar, pela leitura dos livros e reportagens sobre a Amazônia.

A primeira coisa que impressiona muito é a vastidão da floresta e das águas. É algo que não dá para descrever, só vendo pessoalmente. Manaus fica na margem do Rio Negro, e não do Amazonas, como muita gente imagina. Bem em frente à badalada Ponta Negra, “ point” de encontro da população local, o Rio Negro tem 7 km de largura! Mas isso não é nada, perto do ponto em que alcança a maior largura, alguns quilômetros ao norte, na chamada Baía, onde chega a cerca de 34 km. É difícil conceber tanta água.

A floresta, então, é onipresente, maciça, uma explosão de biodiversidade. Quente, úmida, fervilhando de mosquitos e borrachudo, e indescritivelmente densa, é um ambiente claramente inadequado para a vida humana. No entanto, a espécie se adaptou a ela, e nela tem vivido nos últimos 30 mil anos. Me refiro aos indígenas, dos quais existem somente no estado do Amazonas cerca de 85 mil, em um total de mais de 300 mil no Brasil.

Num ambiente tão hostil, a primeira pergunta que nos vem à mente é qual a incidência de doenças provocadas pelo ambiente nesta região. É alta. Em um levantamento feito por estudantes de medicina em uma cidadezinha chamada Envira, que fica no alto Jarí, os números são espantosos. As doenças gastrointestinais de origem infecciosa são as mais comuns. Paradoxalmente, em um mundo tão cheio de água (a bacia amazônica contém 25% da água doce no planeta), os habitantes se infectam basicamente através da água contaminada, pois nesta cidade praticamente não existe tratamento de água, e o mesmo rio onde são lançados os dejetos é aquele que fornece a água para beber. 90% da população de Envira é analfabeta ou tem o primeiro grau incompleto, 90% ganha dois salários mínimos ou menos. Os borrachudos (que lá são chamados de piuns) atacam de dia, em nuvens densas, e os mosquitos (chamados de carapanãs), de noite. Em São Gabriel da Cachoeira, é necessário passar óleo no corpo todo para servir de repelente e algumas pessoas andam com véus, como os apicultores (pois os piuns entram pelos ouvidos, olhos, narinas e bocas abertas...).

A floresta abriga doenças assustadoras, como a dengue, o ouropoche (uma espécie de dengue), a leishmaniose, a hanseníase, a malária e a febre amarela. Algumas doenças febris e hemorrágicas, como a Febre de Lábrea, são tão mortais como o virus de Ebola, e são causadas por arborvirus, que se hospedam em animais da floresta, como macacos. Por isso, Manaus e Belém possuem dois dos mais renomados institutos de pesquisa em doenças tropicais do mundo, a Fundação de Medicina Tropical e o Instituto Evandro Chagas, respectivamente.

Para completar a desgraça, os índios, que eram imunes à muitas dessas doenças encontradas em seu habitat natural, entraram em contato com as doenças dos civilizados, para as quais têm pouca imunidade, como é o caso da gripe, herpes, doenças diarréicas, tifo, sarampo, catapora, etc.  Sem falar das doenças sexualmente transmissíveis (DSTs), inclusive a AIDS, as quais desconheciam totalmente, e para as quais não têm nenhuma espécie de defesa, inclusive devido à cultura sexual das tribos. Evidentemente,estão em alta, pois muitas índias empobrecidas se dedicam à prostituição e levam de volta à tribo as doenças que pegam de garimpeiros, motoristas de caminhão e que tais.

Neste cenário verdadeiramente mórbido, a Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade do Amazonas implementou há mais de 10 anos um programa muito interessante, de internato rural, que leva um pouco de conhecimento e conforto às populações de caboclos e de índios do interior do Amazonas. São estudantes de último ano dos cursos de Medicina, Farmácia e Odontologia, que passam dois meses em turmas de dois alunos, em 11 municípios carentes. Ali, eles não só aprendem muito sobre o modo de vida interiorano e de suas carências e deficiências nas áreas de sanitarismo, alimentação e saúde pública e privada, mas também têm a oportunidade de fazer educação em saúde (inclusive pela rádio comunitária, ou Rádio Peão, como é alcunhada), auxiliar em campanhas e atividades de prevenção, e até realizar atendimentos (algo que eles não tem obrigação de fazer, mas, que pela absoluta carência de médicos e outros profissionais, acabam por ter que fazer, inclusive partos e até pequenas cirurgias).

As distâncias amazônicas são algo difícil de imaginar. A cidade de Envira, por exemplo, que fica na fronteira com o Acre, dista 1210 km em linha reta de Manaus, e 3450 km por via fluvial. É uma viagem de quatro horas de avião de pequeno porte, e de 18 dias em navio de linha (“gaiola”), sendo esta última a única opção para a população de baixa renda. Isso dentro do mesmo estado! Isso significa que um habitante com uma doença séria, morre antes de poder ser removido para qualquer lugar de melhor sofisticação de assistência médica. Os próprios estudantes da Universidade têm que fazer seguro de vida, pago pela Faculdade, antes de fazerem o estágio rural, devido ao alto risco de contraírem doenças da região, ou se acidentarem durante o transporte (a floresta amazônica esconde centenas de aviões destroçados...)

Com tudo isso, a gente se sente humilde perante o poder da natureza. O Amazonas é afortunado: é o estado mais preservado da destruição ambiental (apenas 2% do território, a densidade populacional é de 1,2 habitantes por km quadrado, e 65% da população vive em Manaus). Mas onde se instala o desmatamento, vem atrás as doenças causadas pelo desequilíbrio ecológico. Hoje, Manaus tem a malária chegando aos seus subúrbios mais pobres, assim como doenças mais exóticas, que são uma ameaça permanente à sua população de 1,2 milhão de habitantes. O poder da floresta, que enxota de seu seio quem tenta viver nela, é a principal responsável por essa baixa densidade populacional.
 

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Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 28/7/2000 .
Autor: Email: renato@sabbatini.com

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