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Comunidades Virtuais e Ética

Renato Sabbatini

Em um excelente livro de ficção científica, "He, She and It", a autora, Margot Piercy, faz uma ousada e original exposição de como poderia ser o futuro das redes globais de computadores na metade do século que vem. Segundo ela, todas as redes estariam integradas em uma só, chamada simplesmente de Net. Os países deixarão de existir, sendo divididos em dezenas ou centenas de comunidades menores e autônomas, que trocarão bens e serviços entre si, exclusivamente através da rede. Contatos físicos entre pessoas de diferentes comunidades serão muito raros. Cada pessoa terá uma presença na Net, através de uma "persona", ou seja, um aspecto exterior e personalidade que poderão ser mutantes. Por exemplo, uma pessoa poderá escolher ser representada fisicamente por um animal mítico, um centauro, e depois mudar para uma borboleta. As outras pessoas na Net nunca se verão como são na realidade, mas apenas através de sua personas. Da mesma forma, uma comunidade real poderá aparecer na Net com a forma virtual que quiser: um castelo, uma caverna, etc. Em alguns casos, segundo a autora, as comunidades terão que se esconder e se defender de inimigos, erguendo elaborados e perigosos disfarces, que ela chamou de "quimeras".

Esse nome, realmente, é muito interessante. Comunidades virtuais (que estão começando a aparecer aos montes na proto-Net, que é a Internet de hoje) têm uma dinâmica inteiramente nova, e quimera é um nome apropriado tanto para elas quanto para seus habitantes. A imprensa tem noticiado, de vez em quando, que namoros pela Internet podem ser perigosos, pois quem se esconde atrás de uma caixa de correio eletrônico pode se caracterizar como bem entender. No Rio, por exemplo, ocorreu um caso de um estudante brincalhão, que se correspondeu durante meses com um homem norte-americano, pretendendo ser uma "beautiful Ipanema girl". Quando o homem, inteiramente apaixonado, manifestou sua intenção de visitá-la no Rio, o estudante entrou em pânico e teve que confessar a fraude, o que certamente deve ter quebrado o coração do pobre coitado. Nem mesmo a possibilidade de transmitir voz e imagem chega a mudar a situação. O sujeito pode mandar uma foto retocada, ou modificar eletronicamente a voz, uma vez que o meio eletrônico digital permite qualquer coisa, hoje em dia.

Há, portanto, a necessidade de uma ética para os integrantes de comunidades virtuais. Se relacionar socialmente através de uma rede eletrônica é uma coisa inteiramente nova para a Humanidade. O uso do telefone para isso é um pálido protótipo do que está para vir, mas já dá uma idéia (vejam, por exemplo, o aumento explosivo de telefones eróticos). Com a progressão da tecnologia de redes, é provável que uma parcela significativa da humanidade passe a ficar em casa e exercer a maior parte de seu relacionamento profissional e social através da rede.

Situações interessantes poderão ser criadas. Por exemplo, será crime assumir uma identidade falsa através da rede ? Isso já está nos códigos penais, inclusive no Brasil, mas em um contexto inteiramente diferente (o que os advogados chamam de falsidade ideológica). Mas não é a mesma coisa. A rede permitirá alterações sutis de características e personalidade, que serão muito difíceis de serem usadas para incriminar o seu autor. Portanto, como acontece em todo setor da atividade humana onde a repressão ao desvio é difícil e polêmico, existe a necessidade de prevenção da fraude, do dano e do crime, através da educação moral.

Só que esse campo é tão novo, tão sem precedentes, que os educadores, os religiosos e os juristas têm muito pouco a dizer e a definir. É uma senda fascinante de desenvolvimento e de investigação, e já estão começando a aparecer, na própria Internet (ironia...) os primeiros grupos de discussão a esse respeito. No livro de ficção a que me referi, a sociedade faz uso de vários truques para desmascarar esse tipo de fraude, inclusive com punições programadas e executadas através da própria rede (uma delas consiste em "queimar" os neurônios do usuário, induzindo um estado perpétuo de catatonia, como se fosse uma morte da mente, mas não do corpo).


Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas,
Autor: Email: sabbatin@nib.unicamp.br

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