Indice de Artigos

Um jogo muito humano

Renato M.E. Sabbatini

Na década dos 50, a recém-fundada ciência da computação começou a desenvolver técnicas de inteligência artificial, com o objetivo de produzir programas de computador capazes de imitar funções complexas do intelecto humano. Dois cientistas norte-americanos tinham conseguido realizar a primeira demonstração de que isso era possível, desenvolvendo um programa capaz de provar teoremas de álgebra e geometria elementares. Em alguns casos, as provas desenvolvidas pela máquina foram inteiramente originais, ou seja, não coincidiam com as provas clássicas desenvolvidas pelos matemáticos.

Os jovens e irriquietos cientistas da época buscavam freneticamente outras áreas exclusivas do intelecto humano que pudessem ser utilizadas para comprovar os sucessos da Inteligência Artificial. E o que é mais complexo, tipicamente humano e intelectualmente desafiador do que um bom jogo de xadrez ? Assim, vários grupos partiram em busca desse objetivo. Em 1956, Alex Bernstein, um cientista da IBM, foi o primeiro a conseguir inventar um programa que jogasse xadrez em um tempo razoável, contornando o que John von Neumann denominou de explosão combinatória. Usando um computador IBM 704, Bernstein calculou que, se o programa fosse explorar todas as combinações possíveis de jogadas em cada nível (em média, cerca de 30 possibilidades por movimento), e considerando que um jogo tem cerca de 30 a 40 movimentos; existiria um número de jogos possíveis igual ao número 1 seguido de 120 zeros ! Supondo que um computador fosse capaz de examinar um milhão de movimentos por segundo, ainda assim ele demoraria 10 elevado a 108 anos para jogar todos os jogos possíveis (um tempo maior que a atual idade do Universo).

A solução dada por Bernstein e por todos os programas de xadrez que o sucederam foi muito elegante, e é chamada de heurística. Desenvolveu-se um método que permitia ao computador examinar um número bem menor de movimentos possíveis, mas usando alguma forma de avaliação dos mesmos. Os movimentos menos vantajosos eram eliminados, impedindo assim a explosão combinatória. A partir desta metodologia, muitos programas foram desenvolvidos, como o famoso Kaissa, russo, que aprende com cada jogo, ou o Chess 4.1, americano, que derrotou pela primeira vez um grande-mestre internacional, em 1979. Posteriormente, com o surgimento dos microprocessadores, diversos programas de xadrez foram desenvolvidos, entre os quais Sargon, Boris, Mephisto e Mychess. Muitas máquinas especializadas em jogar xadrez, como o Chess Challenger, foram lançadas comercialmente, com grande sucesso, e são utilizadas por amadores deste jogo, em todo o mundo.

Uma idéia interessante, que apareceu desde que o primeiro programa de xadrez foi inventado, é a de fazer um programa jogar contra outro. Assim, a partir de 1970, nos Estados Unidos, e 1980, em nível mundial, começaram a ser realizados campeonatos de xadrez entre programas. Esses campeonatos são disputados com muita paixão pelas equipes que desenvolvem os programas, e se tornaram uma medida do poder de cada um. O campeão mundial de 1980 a 1983 foi um programa americano chamado BELLE, que, aliás, foi o primeiro a receber o título de mestre pela Federação de Xadrez dos Estados Unidos.

Nos últimos campeonatos de xadrez entre computadores, o grande vencedor tem sido sempre o fabuloso DEEP THOUGHT ("pensamento profundo", em inglês), desenvolvido por pesquisadores da IBM. Este programa possui hoje a pontuação mais alta entre todos (equivalente a um grande mestre internacional), dada pela Federação Internacional de Xadrez, e sua última versão por pouco não derrotou o atual campeão mundial de xadrez. Ele é executado em um computador dotado de vários processadores digitais, desenvolvidos especialmente para acelerar e sofisticar o programa.

A surpresa do campeonato foi um programa desenvolvido pelo inglês Richard Lang, chamado MEPHISTO, que não precisa nada mais sofisticado do que um microcomputador PC 486 para funcionar, e é o atual campeão mundial de xadrez para microcomputadores. No último campeonato norte-americano, MEPHISTO ganhou todos os jogos que disputou, inclusive contra programas muito maiores, em computadores de grande porte, e só perdeu na última rodada para o DEEP THOUGHT. Na realidade, MEPHISTO foi o único programa, até hoje, capaz de derrotar DEEP THOUGHT, o que ocorreu no campeonato norte-americano, em Nevada, em 1989. Outra vitória do mefistofélico MEPHISTO, que é vendido comercialmente pela empresa alemã Hegener & Glaser, foi em um campeonato especial só sobre problemas de final de jogo, que é considerado o ponto mais fraco dos programas de xadrez, quando comparados com seres humanos.

Até o final do século, programas como o DEEP THOUGHT e seus sucessores, vencerão o campeão mundial e se tornarão imbatíveis. Isso significa que os computadores que os abrigarem se tornarão inteligentes ?


Publicado em: Jornal Correio Popular, 12/11/92 Campinas
Autor: Email: sabbatin@nib.unicamp.br
WWW: http://www.nib.unicamp.br/sabbatin.htm
Jornal: cpopular@cpopular.com.br

Copyright © 1992-1995 Correio Popular, Campinas, Brazil