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Golem, Frankenstein e Cia.

Renato M.E. Sabbatini

Dar vida à matéria inanimada é uma obsessão tão velha quanto a própria Humanidade, e está presente nas mitologias e religiões de numerosos povos. Vejam o Adão, por exemplo. De acordo com a Bíblia, "formou pois o Senhor Deus ao homem do limo da terra, e assoprou sobre o seu rosto um assopro de vida; e recebeu o homem alma e vida" (Gênesis, 2:7)

Assim, o homem de barro que recebe o dom da vida passou a permear a mitologia dos povos semitas, através do conceito do golem (significa substância embrionária, ou incompleta, em hebraico). A lenda mais bem estruturada vem da Europa Central, mais precisamente da Praga do século VI, onde vivia o rabino Judah Loew ben Bezulel. Vendo seu povo acossado pelos sucessivos pogroms que dizimavam o gueto judaico, o rabino teve a idéia de fazer um boneco de argila e dar-lhe vida através de ritos cabalísticos que envolviam pronunciar determinadas letras dos vários nomes secretos de Jeová. Segundo a lenda, o golem, ao qual se deu o nome de Joseph, tornou-se um protetor do gueto, derrubando todos os inimigos dos judeus e impondo respeito através de sua força e resistência descomunais. Entretanto, ele, que no começo era um robô mecanístico e incapaz de avaliar suas próprias ações ou poder, aos poucos adquire emoções, sentimentos e consciência. Passa a julgar-se um membro da espécie humana e se apaixona pela filha do rabino. Incapaz de aceitar que isso acontecesse com uma criação artificial, o rabino destrói o golem, prendendo-o no sótão da sinagoga de Praga, a Altneuschul.

A lenda do golem se repete em muitos lugares na literatura e na arte e inspirou livros e filmes na década dos 20. O conhecido romance da inglesa Mary Wolstencroft Shelley, "Frankenstein, ou o Moderno Prometeu", também foi inspirado no golem. Nele, um médico suiço, Victor Frankenstein, cria um ser artificial com de partes de cadáveres, ao qual dá vida por meio de impulsos elétricos. O monstro se revela capaz de emoções, e revoltado com o horror que provoca aos seres humanos, torna-se incontrolavelmente violento e tem que ser destruído. É impossível deixar de notar a analogia com a lenda do golem, principalmente depois do famoso filme de Boris Karloff, em 1930, que fixou na imaginação coletiva a imagem do monstro Frankenstein, com seu aspecto gigantesco e repulsivo, andar mecânico e inteligência limitada.

Somente no final deste século é que o Homem começou a concretizar a possibilidade de vida artificial, através da robótica, um termo criado pelo cientista Marvin Minski, do MIT, para caracterizar autômatos dotados de inteligência. O termo robô vem, coincidemente, da mesma Praga do rabino Loew, e deriva de uma palavra tcheca que significa trabalhador. Na década dos 20, o dramaturgo tcheco Karel Capek escreveu uma peça chamada R.U.R., na qual homens mecânicos, criados por um genial cientista chamado Rossum, para trabalhar em fábricas, adquirem emoções e sentimentos e se rebelam contra a escravidão imposta por seus patrões. A peça termina pessimisticamente, com toda a Humanidade destruída pelos robôs vitoriosos.

Dos anos 40 até o presente, muitos contos e livros de ficção científica se ocuparam dos seres artificiais, cyborgs e robôs. Quase todas as histórias acabam como o golem Joseph e o monstro Frankenstein, ou seja: a criatura se volta contra o criador, e a coisa acaba mal (ver por exemplo, o cult-film Blade Runner). A única exceção ocorre na obra de Isaac Asimov, que criou muitos robôs benignos, incapazes de fazer mal aos seres humanos, em virtude das três leis da robótica, embutidas permanentemente em sua programação.

Se um dia conseguirmos criar realmente seres artificiais tão inteligentes como nós, será que eles terão direitos "humanos" ? É bem provável que sim. Se hoje em dia, até animais irracionais têm direito à vida e à proteção, o que dirá uma personalidade inteligente e capaz de sentimentos e emoções como nós ? Em um famoso livro sobre o assunto ("God and Golem"), o cientista John von Neumann, um dos pais da informática e da robótica, prova que um robô, para ser efetivo, terá que ser obrigatoriamente dotado dessas propriedades da alma...

Por outro lado, existem muitissimos seres humanos, vivendo na miséria ou debaixo de tiranias, que não têm nenhum direito. No final das contas, em países como o Brasil, onde a vida humana vale tão pouco, discussões como essa acabam sendo mera retórica.


Publicado em: Jornal Correio Popular, 15/7/93, Campinas,
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