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Ciência e Tecnologia em 1999

 

Renato Sabbatini

Como acontece todo final de ano (este, marcado pelo final do milênio mais importante para a história da humanidade), farei uma análise dos principais avanços da ciência, nesta e na próxima coluna.

Infelizmente, em 1999, a ciência teve mais repercussões na mídia por alguns de seus fracassos e polêmicas do que pelas suas conquistas, que foram muitas. Os maiores desastres foram na exploração espacial, com a perda de duas missões à Marte pela NASA, uma em setembro, quando a sonda Mars Climate Orbiter (MCO), de $87 milhões, entrou depressa demais na atmosfera marciana e se desintegrou. A pior vergonha para a NASA foi admitir que uma das principais causas do problema foi uma confusão de unidades de medida do sistema métrico com o sistema anglo-métrico: os engenheiros usaram libras-segundo, ao invés de newtons-segundo, como seria o correto. A "maldição do planeta vermelho" continuou com o desaparecimento do Mars Polar Lander, que deveria descer em Marte para outra missão robótica em 3 de dezembro. Ninguém sabe o que aconteceu: a nave nunca mais se comunicou com a Terra. Conclusão: a nova orientação das missões científicas planetárias da NASA, que se caracterizavam pelo dístico "mais barato, mais depressa, melhor", ou seja, utilizar naves automática de custo muito inferior às anteriores, como o Voyager, não significa necessariamente que elas dão certo… Com isso, sofreu o prestigio científico da NASA, bem como os conhecimentos necessários para preparar a missão tripulada que eventualmente viajará para aquele planeta.

Outra polêmica que explodiu em 1999, e que também não fez muito bem à ciência, foi o dos alimentos modificados geneticamente. Foi um desastre para a indústria de biotecnologia, que vinha conseguindo ganhos consideráveis na última década com os avanços da engenharia genética, principalmente na modificação de plantas para consumo animal e humano, e que silenciosamente vinha introduzindo novas sementes em grande número de setores, como algodão, milho, soja, frutas, etc. (as chamadas "cash crops"). Mais de 50% dos campos plantados nos EUA já usavam sementes modificadas geneticamente no começo do ano, quando a reação da população passou a ocorrer a partir da Europa, principalmente na Inglaterra, e depois na Comunidade Européia, que, pressionada, resolveu proibir a importação de alimentos obtidos com a ajuda dessa tecnologia.

As críticas e o temor do público foram alimentadas pelos resultados de alguns experimentos, que mostraram que o pólen de milho modificado geneticamente para conter um inseticida bacteriano era tóxico para larvas de borboletas que dele se alimentaram (bom, foi para isso mesmo que ele foi feito, não é?). Outro experimento, muito criticado pela Sociedade Real da Inglaterra pelas suas inúmeras falhas, aparentemente mostrou modificações patológicas nos intestinos de ratos que comeram batatas transgênicas. O sensacionalismo da imprensa em torno desses poucos e inconclusivos experimentos, no entanto, causou um grande efeito. No entanto, apesar dos argumentos dos cientistas que defendem a inocuidade e os benefícios das modificações transgênicas das plantas, o fato é que existem muitos poucos estudos demonstrando essa inocuidade. Uma das maiores preocupações é que na natureza ocorrem freqüentemente a transferência de genes entre espécies de bactérias e de plantas que vivem no mesmo ambiente. O desenvolvimento de plantas úteis resistentes a inseticidas, por exemplo, como fez a Monsanto, poderia ocasionar o aparecimento de "super-ervas daninhas", anulando o efeito.

Para terminar as más noticias para a ciência de 1999, ocorreu o retrocesso no ensino da teoria da evolução orgânica em alguns estados norte-americanos, principalmente quando a Comissão Educacional do Estado de Kansas retirou dos requisitos de exame perguntas sobre essa área do saber no ensino secundário. A notícia causou grande impacto nos círculos científicos de todo o mundo, principalmente tendo acontecido no país que é o líder mundial em ciência e tecnologia. Mas não foi exatamente surpreendente: uma enquete recente mostrou que 36% dos adultos americanos acreditam na versão literal da Bíblia sobre a criação do Universo, contra todas as evidências científicas, e que 72% acham que as crianças devem receber ensinamentos alternativos à teoria da evolução de Darwin, como a teoria criacionista. Que isso esteja acontecendo às vésperas do novo milênio é simplesmente espantoso. Os próprios candidatos à presidência, com medo de números tão grandes de "rejeição" da população às teorias científicas, foram cautelosos em suas declarações. Bush, por exemplo, declarou ter "certeza que seus filhos não descendiam de macacos", o que é o cúmulo da ignorância. E esse homem poderá ser presidente dos EUA, a nação que mais aproveitou, social, economia e politicamente o poderio de seu estabelecimento científico e tecnológico! Como disse Wayne Carley, diretor da Associação de Professores de Biologia dos EUA, "demorou 300 anos para a Igreja aceitar Galileu. Talvez passem ainda mais 300 anos até que os EUA alcancem o resto do mundo".

Finalmente o desastre final, que custou muito para ser corrigido, e ninguém ainda sabe qual vai ser o resultado, foi o do "Bug do Milênio", ou Y2K, criado (e resolvido) pela própria tecnologia. O "imbróglio" é culpa dos programadores, que, para economizar memória dos computadores, utilizaram, na maioria dos softwares desenvolvidos, apenas dois dígitos para representar os anos, o que levaria a erros catastróficos na virada de 1999 para 2000. A confusão e o tratamento algo sensacionalista provocou dúvidas e medo na população, e diminuiu sensivelmente a fé de todos na perfeição da ciência e da tecnologia. Nunca um erro foi tão generalizado e causou tantos problemas na nossa história como esse. Calcula-se que foram gastos 1 trilhão de dólares para modificar os milhões de programas de computador com problemas potenciais, e mesmo assim existem muitas áreas que não conseguirão ser corrigidas a tempo.

Mas a ciência de 1999 também foi feita de muitos avanços e conquistas importantes.

Ano após ano, uma das áreas que tem revelado maior progresso na ciência é a biologia molecular, e que é cada vez mais importante na definição da medicina do próximo milênio. O Projeto Genoma Humano, que se esperava terminar em 2005, provavelmente será concluído já em março do ano que vem, graças ao uso maciço de novas tecnologias de bioinformática, que se transformou em um novo, imenso e bem-sucedido campo profissional, com grande demanda por profissionais qualificados. Desde os equipamentos que analisam as seqüências de bases do DNA e RNA, ou de aminoacidos das proteínas, até o sistemas de síntese, comunicação de resultados, etc., tudo é intensamente computadorizado, permitindo aumentar em até 100 vezes a produtividade dos laboratórios nos últimos cinco anos. Quando um novo gene é seqüenciado, seus dados moleculares e aspectos relacionados à sua expressão são enviados pela Internet ao GenBank e outros bancos de dados on-line específicos e padronizados, que pesquisadores de todo o mundo podem consultar gratuitamente, através do imenso site do National Center for Biotechnology Information (NCBI), do National Institutes of Health dos EUA (o endereço na Internet é www.ncbi.nlm.nih.gov). Ali estão todos os genes conhecidos de todas as espécies vivas, assim como as estruturas de todas as proteínas conhecidas. Nos últimos dois anos, esses bancos têm crescido a uma velocidade explosiva. 

Além do Homo sapiens, espera-se para o ano que vem a finalização do mapeamento do genoma de várias outras espécies, como o camundongo, a mosca-das-frutas, etc.  Uma das notícias científicas mais importantes de 1999 foi o anúncio de que um cromossoma humano completo, o de número 22, teve todos seus genes decodificados. Foi a primeira vez que isso aconteceu. Muito importante também, mas menos notado pela imprensa, tem sido o mapeamento completo dos genomas de diversos organismos patogênicos de relevância para o homem, como a Chlamydia pneumoniae, que causa infecções respiratórias, o Campylobacter jejuni, que causa infecções de origem alimentar; o Mycobacterium tuberculosis, a bactéria da tuberculose, e o protozoário Plasmodium falciparum, causador da malária. Imaginem, por exemplo, quando soubermos o genoma completo do Trypanosoma cruzi, o agente patogênico da Doença de Chagas. A medicina poderá descobrir novas formas de atacar o parasita dentro do corpo, utilizando técnicas genéticas (tornando-o inofensivo, por exemplo, ou provocando seu "suicídio" celular). Aliás, no Brasil, a ciência do genoma também recebeu um grande impulso em 1999 com a inauguração, com o apoio da FAPESP, de um "Instituto Virtual de Genômica", e de um programa de pesquisa dedicado ao mapeamento do genoma de células de vários tipos de câncer.

Outra coisa que se tornou muito evidente em 1999 é que computador e a Internet estão em toda a parte, e ao longo do ano pudemos verificar sua importância em muitos campos da ciência, alguns dos quais não existiriam sem o auxílio da informática. Softwares sofisticadissimos são capazes de detectar homologias (segmentos de DNA similares a outros), ou de fazer a previsão da estrutura terciária de enzimas e outras proteínas de interesse biológico e farmacológico. Aliás, esse tipo de aplicação é de vital interesse para a indústria farmacêutica do futuro, pois permitirá testar a viabilidade terapêutica de milhares de configurações moleculares por mês, prevendo seu efeito biológico com base na estrutura 3D e de como ela se ajusta à estrutura de receptores conhecidos. Por esse motivo, a IBM anunciou recentemente o desenvolvimento do computador mais rápido do mundo, que será constituído de um milhão de computadores em paralelo, cada um com a velocidade de um bilhão de operações por segundo, para realizar essas reconstruções tridimensionais de proteínas. A máquina, apelidada de "Blue Gene", custará 100 milhões de dólares e cinco anos para ser construída, e terá a espantosa velocidade de 1 quadrilhão de operações por segundo (um petaflop, como é o nome da unidade).

Outra grande descoberta de 1999 também veio pelas mãos da biologia. Um laboratório americano conseguiu pela primeira vez a reprodução "in vitro" (forma do organismo) das chamadas "células-tronco", sem limite, e mantendo suas propriedades. As células-tronco são células presentes nos embriões de todas as espécies vivas, e que, com o desenvolvimento do embrião, vão se especializando nos vários tipos de células diferentes que formam os órgãos, como células nervosas, musculares, da pele, das glândulas, etc., em um processo que se denomina "diferenciação celular". Ao dominar a reprodução das células-tronco e a diferenciação celular, isso significa que os cientistas poderão construir artificialmente qualquer órgão para transplante, ou células para reposição em muitos tipos de doença, como leucemia, anemia grave, doenças neurodegenerativas, perda celular por trauma ou amputação, etc. Os cientistas já conseguiram demonstrar essa capacidade em camundongos e outros animais de pesquisa, o que indica que, no futuro, poderão ser utilizadas em seres humanos, também'.

No entanto, existem ainda muitos problemas éticos e morais no uso humano de células-tronco, pois elas teriam que ser retiradas de embriões humanos, o que é proibido na maioria dos países. O Instituto Nacional de Saúde dos EUA recentemente proibiu o uso de verbas federais para a aquisição e isolamento de células-tronco embrionárias humanas. A preocupação do Instituto decorre do fato de que existem milhões de embriões congelados a partir de procedimentos de fertilização in-vitro (os chamados "bebês de proveta"), que ninguém sabe o que fazer. Um dos usos potenciais seria deixá-los desenvolver até o estágio em que as células-tronco pluripotentes possam ser extraídas, e depois matar o embrião, mas as preocupações éticas e a oposição de grupos religiosos e pró-vida tem sido muito forte.

Portanto, o grande potencial de pesquisa será oferecido pela manipulação de células-tronco de adultos, que são mais acessíveis. Elas teriam a grande vantagem de permitir a formação de tecidos e órgãos para uma determinada pessoa, como um rim, um fígado ou um coração, que seriam então implantados sem perigo nenhum de rejeição. Os cientistas já conseguiram formar em laboratório neurônios, músculo e osso. Recentemente, por exemplo, células-tronco embrionárias neurais foram usadas para reparar danos traumáticos à espinha vertebral mais de uma semana depois da lesão ter ocorrido.

Sem dúvida, estamos às portas de uma nova revolução científica. Segundo o biólogo Floyd Bloom, editor da prestigiosa revista científica Science, "as células-tronco representam uma descoberta rara que muda profundamente a prática e a interpretação da ciência e suas implicações para a sociedade".
 


Correio PopularPublicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 24/12/99 e 31/12/99.

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