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A Morte das Revistas Científicas no Brasil

Renato Sabbatini

A ciência não existe sem publicação. Em outras palavras, não adianta nada o cientista ficar mourejando por meses ou anos em um laboratório e depois guardar para si os resultados de sua pesquisa. É como se não tivesse feito nada. Tanto é assim, que a produtividade e a qualidade do trabalho de um cientista são avaliadas por seus colegas com base no número e tipos de publicações que ele fez ao longo de sua vida profissional. E como a ciência é internacional, dá-se maior valor às publicações aceitas em revistas de prestígio, que circulam em todo o mundo. Isso todo mundo sabe.

O que pouca gente sabe é que o Brasil tem pouquíssimas revistas de circulação internacional. Um instituto americano especializado na edição dos chamados índices secundários (ou seja, publicações que contém listas do que foi publicado nas revistas científicas), o Institute for Scientific Information (ISI), de Philadelphia, EUA, virou ditador do que presta e do que não presta em matéria de periódico internacional de pesquisa. O seu fundador, um homem inteligentíssimo, chamado Eugene Garfield, inventou um monte de índices numéricos para medir a qualidade, a abrangência e o impacto de uma revista. Este último mede essencialmente se os trabalhos publicados na revista são lidos e citados por outros pesquisadores.

Em sucessivas análises, Garfield demonstrou que, quanto maior o impacto de uma revista, maior a qualidade de seus trabalhos, exigências quanto à seleção e a aceitação dos mesmos, composição do conselho editorial, etc. Ele chegou até mesmo a prever quem iria ganhar o prêmio Nobel algumas vezes: eram sempre os cientistas que, individualmente, tinham, entre outras coisas, um dos maiores índices de citação pelos colegas!

Pois bem, o que tem isso a ver com o Brasil? Em um artigo anterior no Correio Popular, eu falei sobre a "ciência perdida no terceiro mundo", que são todas as pesquisas científicas feitas em países como o Brasil que nunca conseguem ser publicadas nas revistas de maior prestígio e permanecem desconhecidas de seus colegas. A solução para vencer essa barreira foi ter revistas científicas brasileiras, e existem mais de 2.000 delas. Somente em Medicina existem quase 400, que vão desde revistas editadas por faculdades (as duas faculdades de Campinas, da UNICAMP e da PUCCAMP tem suas revistas também), de circulação extremamente restrita, a gigantes editoriais, respeitadíssimas publicações que circulam no exterior, figuram em todos os índices do ISI e ostentam razoáveis índices de impacto, como o Brazilian Journal of Medical and Biological Research, publicado em Ribeirão Preto por sete sociedades científicas na área biomédica (sim, tem que ser em inglês, que é a linguagem internacional da ciência).

Infelizmente, a maioria dessas revistas apenas sobrevive. Em primeiro lugar, elas têm uma tiragem que dificilmente passa dos mil ou dois mil exemplares por número. Quase não têm assinantes (em geral, em torno de 10% da tiragem, apenas), não encontram anunciantes, e as bibliotecas universitárias preferem recebê-las gratuitamente, por falta de interesse ou de verba (as vezes, não as querem nem gratuitamente, devido à uma falta de espaço crônica nas estantes). Algumas são sustentadas por sociedades científicas, mas até mesmo esse dinheiro é difícil de conseguir, pois as sociedades no Brasil são quase que uniformemente pobres de recursos. A conseqüência é que o modelo econômico das revistas científicas brasileiras é extremamente dependente do estado. O dinheiro para editá-las, imprimi-las e distribuí-las vem de programas de fomento desenvolvidos pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, ligado ao Ministério de Ciência e Tecnologia), com dinheiro da FINEP (Financiadora de Estudos e Projetos) e, em alguns estados, pelas fundações de amparo à pesquisa, como a FAPESP.

Acontece que agora todas correm o perigo de morrer definitivamente. O pacote fiscal severíssimo lançado pelo governo federal nos últimos dias deixou os órgãos de apoio à pesquisa totalmente à míngua. O CNPq, por exemplo, foi obrigado a fazer um corte linear em todos seus programas de apoio, inclusive novas bolsas, projetos de pesquisa, dinheiro ainda não aplicado, etc., e teve que suspender uma série de auxílios, entre os quais, ao que parece, os que são dados às revistas, através do Programa de Apoio às Publicações Cientificas. Se isso for confirmado, o resultado vai ser um massacre sem precedentes. Revistas de altíssima qualidade, como o Brazilian Journal, misturadas de cambulhada com revistas não tão importantes, irão todas para o mesmo bueiro, após décadas e décadas de publicação ininterrupta. E não é por falta de bons padrinhos. Entre os três editores-chefes do Brazilian Journal, por exemplo, existe um presidente da Academia Brasileira de Ciências (Eduardo Krieger) e um presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Sérgio Ferreira, simplesmente as duas instituições maiores da ciência nacional. O atual ministro da Ciência e Tecnologia, professor Israel Vargas, que foi obrigado a comandar o corte, é cientista com longa história, tendo sido, também, presidente da Academia.

É preciso que as sociedades científicas façam um apelo urgente ao nosso presidente da República, que também é professor universitário e cientista (aliás, nunca a universidade esteve tanto no poder quanto no atual governo reeleito, mas parece que isso tem prejudicado, mais do que ajudado), que preserve a verba do programa, pelo menos para as revistas mais importantes. Será tremendamente danoso para a pesquisa brasileira a extinção dessas revistas. Mesmo que a verba seja restabelecida um dia, o mal já estará feito. A experiência mostra que dificilmente uma revista volta a ser publicada novamente, depois de ser interrompida. É certo que todos os brasileiros deverão ser sacrificados no altar odioso dos especuladores financeiros internacionais, e que todos deverão contribuir um pouco, mas existem certas coisas que têm que ser preservadas. Nem na Segunda Guerra Mundial a circulação internacional das revistas americanas e européias mais importantes foi interrompida.

Se não soubermos quais são nossas prioridades para a preservação do futuro, estamos condenados como povo soberano.


Correio PopularPublicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 30/10/98.

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