Indice de artigos

Eternos estudantes

 

Renato Sabbatini

 

A velocidade de acumulação do conhecimento neste final do século, acelerada dramaticamente pela Internet, está provocando uma salutar crise em todas as profissões. É só compararmos a situação atual com o que era exigido para ser um bom profissional, no passado. Os sistemas de aprendizado profissional tiveram origem na Idade Média, com os “guilds”. Um construtor de casas, por exemplo, aprendia seu ofício através de um relacionamento direto com o seu professor, outro construtor de casas. Depois que ele aprendia as técnicas fundamentais, praticamente não as mudava, conservando e aplicando esse conhecimento por toda a vida. Raramente existia alguém que tentava mudar ou aperfeiçoar as coisas que tinha aprendido, transmitindo-as assim, de forma estática e quase imutável, por gerações e gerações.

Atualmente, a situação é bem diferente. Um engenheiro ou médico, por exemplo, precisa estudar constantemente, pois o conhecimento em seus campos evolui, cresce e se transforma continuamente, a um ritmo cada vez mais frenético. Conhecimento gera mais conhecimento, em uma acumulação exponencial, e os novos meios de comunicação aumentam enormemente a velocidade de disseminação e de acesso ao mesmo. Para se ter uma idéia, basta examinar as estatísticas de crescimento da Internet: o número de computadores conectado já é de mais de 25 milhões, e dobra a cada ano, assim como o número de usuários. Atualmente, entram na Internet cerca de 1,6 milhões de computadores por mês ! Outra estatística alucinante é a referente ao número de documentos disponíveis publicamente na Internet, seja na forma de “sites” ou de publicações: os últimos dados indicam que o volume de informação está duplicando a cada quatro meses. Atualmente, são mais de 150 milhões de documentos.

Na medicina, particularmente, a pressão pelo aprendizado contínuo é avassaladora e constante. Nos EUA, o médico é obrigado a demonstrar que estudou e se aperfeiçou regularmente, para fazer jús à renovação de seu título de especialista, o qual não é eterno. Faz sentido, pois se até carteira de motorista a gente tem que renovar, porque o médico, os engenheiros, os advogados, etc., têm licança perpétua para aplicar seus conhecimentos até o fim da vida, sem serem checados uma vez sequer ? A certificação perpétua tinha sentido há 100 ou 200 atrás, quando a obsolescência do conhecimento adquirido na Faculdade era incomparavelmente menor.... Hoje em dia, é uma verdadeira sandice que a sociedade aceite a idéia que os profissionais que exercem funções cruciais, que envolvem vidas humanas, o tecido social e a segurança da população, continuem os mesmos desdes que se formaram.

Os recentes acontecimentos no campo da saúde, como a falsificação dos medicamentos, notícias constantes de erros médicos, a criação indiscriminada de faculdades de medicina, etc., e no campo da engenharia, como a queda de edifícios por erros de engenharia, trouxe à discussão pública o problema sério da competência profissional. A sociedade está pressionando para um rigor maior na concessão de credenciamento profissional, e está sendo necessário um posicionamento mais rigoroso das sociedades e conselhos profissionais, como a Associação Médica Brasileira, a Associação Brasileira de Odontologia, os Conselhos Federais e Regionais de Medicina, Odontologia, Engenharia,  etc.

A AMB já está estudando, através de um Conselho de Educação Médica, a instituição da obrigatoriedade da renovação do título de especialidade médica (ginecologia, pediatria, ortopedia, etc.) a cada cinco anos. Essa renovação se dará através de exames escritos e orais, bem como a comprovação curricular que o profissional se aperfeiçoou nesse período, ou seja, assistiu a cursos de reciclagem, congressos, publicou artigos, etc. Através de um sistema de créditos, proporcionais ao número de horas que dedicou ao auto-aperfeiçoamento (e que já existe há muitos anos nos EUA), o profissional vai poder ser avaliado também para contratação, promoção e recertificação profissional.

Acho essa iniciativa da AMB extremamente louvável. Se der certo, será uma revolução de qualidade na prática médica. Surgirão por todo o país iniciativas destinadas a suprir o mercado de educação médica continuada, que multiplicará de valor. Espero sinceramente que as outras profissões passem a exigir o mesmo de seus profissionais, e que o exemplo dado pelo “provão” seja ampliado pelo MEC para a Medicina e que, finalmente, se torne obrigatório, como é em todos os países europeus. Tirar um diploma em uma faculdade não será mais licença automática para clinicar, e muitas faculdades terão que melhorar a qualidade do ensino, ou poderão ser fechadas. Alguém pode argumentar que isso não aconteceu com as faculdades de direito, que não fecham apesar de terem altas reprovações no exame da OAB. Acontece que segundo estatísticas da AMB, 96,4 % dos médicos formados pelas faculdades brasileiras exercem atividade profissional na área. Portanto, há uma baixissima taxa de desistência do exercício profissional, o que não acontece com os cursos jurídicos.

Obviamente, o corporativismo de muitas dessas profissões será uma barreira séria à correção dos rumos educacionais no país. Mas não é intransponível. A gritaria de protesto corporativista que acompanhou a instituição do “provão” em um primeiro momento está sendo substituída agora pela preocupação dos alunos e das faculdades em aperfeiçoarem a infraestrutura do ensino e o grau de excelência e titulação dos docentes. O Brasil será um novo país, em pouco tempo, se tivermos coragem de levar adiante o processo de avaliação contínua !
 


Correio PopularPublicado em: Jornal Correio Popular, Campinas,  7/8/98.

Autor: Email: renato@sabbatini.com

WWW: http://renato.sabbatini.com
Jornal: Email: cpopular@cpopular.com.br
WWW: http://www.cosmo.com.br

Copyright © 1999 Correio Popular, Campinas, Brazil