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A teoria das elites

 

 Renato Sabbatini

  

Uma das coisas que diferencia as sociedades avançadas das atrasadas é o tamanho de suas elites. A democratização e a universalização da educação nos últimos 100 anos fizeram muito pela diminuição do domínio das elites, mas elas continuam sendo essenciais para a integridade e continuidade do funcionamento da sociedade como um todo.

 A extinção de diversas sociedades civilizadas do passado dão credibilidade a essa teoria. Recentemente estive visitando novamente as ruínas do povo Maia, na península de Yucatán, no México, e, como da outra vez, elas me provocaram muitas reflexões. A cidade de Chichen Itzá, por exemplo, a 65 km de distância de Cancún (muitos turistas brasileiros que vão para lá poderiam tomar uma boa lição da história se arranjassem um tempinho para visitar as ruínas) tem o porte, a imponência e a beleza plástica de áreas semelhantes da Grécia e do Egito. Uma pirâmide imensa e um palácio inacreditável, com mil colunas e magníficas abóbodas e escadarias, dominam com elegância e mistério uma área que surge do meio do nada, na floresta densa da planície que se estende em todas as direções. Fiquei imaginando como se sentiram os primeiros exploradores europeus, ao toparem com semelhante maravilha, pela primeira vez. Até mesmo comprei Maya Explorer, uma biografia de Jonh L. Stephens, o legendário explorador e arqueólogo americano que revelou essa civilização perdida para o mundo, na metade do século passado.

 A sofisticada civilização religiosa e guerreira maia desapareceu de forma abrupta cerca de 200 anos antes de chegarem os conquistadores espanhóis. Centenas de cidades enormes, como Palenque, Copán, Cobá, Uxmal, Tulum e Chichen Itzá foram desertadas por seus habitantes de forma misteriosa, e deixadas para trás. O povo maia não morreu, pois os mesmos milhões de índios de pele acobreada, nariz aquilino, testa ampla, olhos amendoados e porte atarracado continuaram a viver e se reproduzir em choupanas de pau-a-pique e teto de palha, pelos séculos subseqüentes. O que desapareceu foi o conhecimento capaz de erguer pirâmides, de construir estradas pavimentadas de pedra e cimento com centenas de quilômetros de extensão, de prever eventos astrônomicos com séculos de antecedência, e desenvolver uma matemática, linguagem escrita e arte tão elaboradas como os seus iguais na China, na Índia e no Egito. O que morreu foi a elite minúscula de padres-cientistas, artesãos e governantes que detinha esses conhecimentos e os passava de geração em geração através da tradição oral e escrita. Não temos números, mas especula-se que ela seria constituída por pouco mais de 1 % da população maia !

A resistência e continuidade de um povo depende, portanto, do tamanho e do grau de isolamento de suas elites científicas e tecnológicas. Ninguém sabe ao certo o que levou os maias (assim como a civilização minoana, e tantas outras) à perda de seu acervo científico e tecnológico, mas um dos fatores foi a guerra excessiva e patológica entre os lordes maias. Outras especulações incluem uma seca prolongada, e até a devastação causada por uma religião bárbara, dedicada ao sacrifício humano. O fato é que qualquer povo está sujeito a isso. Um cientista inglês do século passado chegou a afirmar que a Grã-Bretanha regrediria à epoca medieval, se a sua pequena elite de cientistas e engenheiros desaparecesse subitamente.

Todas essas reflexões me trazem ao aspecto que eu, cansativamente, tenho debatido nessas crônicas no Correio Popular: o de que, nós, brasileiros, corremos o perigo constante de sacrificar a continuidade dessa nossa elite intelectual, pelo descaso que estamos tendo com a educação. As elites se autoperpetuam através da herança cultural, transmitida em seu seio, e isso é aparente no fato de que a burguesia que delas se alimenta manda seus filhos para os melhores colégios e universidades, como a USP e a UNICAMP. No entanto, a democratização do acesso à educação, que só ocorreu no Brasil há muito pouco tempo, historicamente falando (universidades públicas de boa qualidade existem há meio século apenas), deveria assegurar que esse privilégio de pertencer a elite criadora fosse assegurado com base apenas no mérito e na inteligência dos seus estudantes, e não exclusivamente em sua posição social e econômica. Embora possa se argumentar que uma das funções do exame vestibular é justamente prover um portão equalitário e seletivo através do mérito, o fato é que poucos jovens do chamado "povão" têm oportunidade de acesso.

A tragédia infindável do nosso ensino gratuito primário e secundário (quem ensina ou tem parentes que ensinam nessas instituições sabe do que eu estou falando…) está comprometendo o futuro e a vitalidade do povo brasileiro. Talvez precisássemos ter a coragem de mudar totalmente o modelo, virá-lo de cabeça para baixo, de partirmos para soluções novas e eficazes.

Será que a escola pública é realmente o único modelo ? Será que aumentar o salário do professor público é a única solução ? Será que o vestibular é mesmo necessário ? Como obrigar as elites a serem mais generosas para com os despossuídos do acesso ao conhecimento ?

Todas as "vacas sagradas" precisam ser desafiadas, nessa reengenharia.

 


Correio PopularPublicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 31/7/97.

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