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A ameaça do terrorismo químico e biológico

Renato Sabbatini

 

Nesta semana uma agência de notícias libanesa divulgou duas informações que foram pouco divulgadas na imprensa ocidental. Podem ser apenas boatos, mas pela proximidade que os libaneses têm das várias nações islâmicas, inclusive do Afeganistão, a credibilidade aumenta.

A primeira notícia é que emissários do governo taliban do Afeganistão, que foram até o refúgio do grupo de Osama bin Laden, o milionário saudita que se acredita ser o comandante da organização terrorista islâmica responsável pelos atentados de 11 de setembro nos EUA, nada encontraram a não ser dezenas de cadáveres de animais (cães, cabras, camelos, etc.) espalhados pelo terreno. Apavorados, os emissários retornaram com a notícia, que tem sido interpretada como o resultado de um provável experimento de bin Laden com guerra biológica e química, principalmente porque noticias anteriores davam conta de que o comandante do terror estaria contratando químicos e cientistas para desenvolver armas desse tipo.

Ataque de gases no front da I Guerra Mundial e soldados cegos pelo gás mostarda
A guerra química utiliza substâncias de alto poder tóxico, como o gás mostarda, o gás sarin e agentes de ação nervosa. O gás mostarda (que tem esse nome devido ao seu odor característico) foi usado em alguns ataques na I Guerra Mundial, com resultados horrendos (quase 100 mil mortos, 2 milhões de feridos e incapacitados). O sarin foi usado pelos nazistas nos campos de concentração para exterminar prisioneiros. Eles são muito fáceis de fabricar e dispersar em um alvo com densidade populacional alta (pontos de concentração de tropas, cidades, etc.).

Um exemplo emblemático dessa grande facilidade foi dado, como todos devem se lembrar, por uma seita japonesa chamada Aum Shinri Kyo ("A Verdade Suprema"), comandada pelo fanático Shoko Asahara, que hoje está preso juntamente com centenas de colaboradores. Ele ordenou o uso do sarin em um ataque no metrô de Tóquio em 1997, que matou 12 pessoas e feriu mais de cinco mil. Em 1994, a seita já tinha feito um "experimento" com gás de nervos, matando sete pessoas. Para atingir esses alvos, a seita recrutou químicos e outros cientistas, que desenvolveram um método de fabricar secretamente esses gases tóxicos, usando insumos químicos que podem ser comprados fácil e livremente em qualquer país industrializado. Experts japoneses e da ONU descobriram uma fábrica de gases tóxicos em um subúrbio, que foi destruída. O cientista chefe, Dr. Ikuo Hayashi, apelidado de "Dr. Morte" pela imprensa japonesa, foi condenado e aprisionado, por sua participação. Ela tinha tentado, dois anos antes, fazer também um ataque usando uma arma biológica, esporos do bacilo do antraz. Felizmente não conseguiu, mas acho que a história seria outra se eles não tivessem sido presos devido ao atentado com gás. E os resultados, provavelmente, seriam muito mais horrendos do que se imagina.

Dessa forma, confirmaram-se as piores suspeitas dos especialistas em terrorismo, de que os próximos ataques de destruição em massa por terroristas poderão ocorrer com essas substâncias. Eles não respeitam as convenções internacionais que proíbem o uso de armas químicas em ataques militares ou civis, obviamente.

Armas biológicas, por sua vez, utilizam vírus e bactérias letais, como o antraz, que provocam uma tremenda mortandade entre populações civis desprotegidas, ao iniciar epidemias que podem se propagar mesmo que a quantidade inicial dispersa for pequena. Felizmente, até hoje nunca foram utilizadas, nem em guerras convencionais nem por terroristas. No primeiro caso, porque o medo de que ventos contrários possam jogar os microorganismos de volta sobre os atacantes é muito grande. Contra alguns desses vírus, como o de Ebola, não existe medicamento, soro ou vacina conhecidos, e a mortalidade excede 90% da população atingida. Um princípio fundamental da doutrina de uma guerra de qualquer tipo é a direcionalidade das armas de ataque, ou seja, elas devem atingir somente o inimigo, ou deve haver algum tipo de proteção prévia das forças atacantes. Para esses vírus esse segundo item não se aplica. Mesmo assim, muitas nações, inclusive renegados internacionais, como Saddam Hussein, não renunciaram à pesquisa e desenvolvimento de armas biológicas, o que é extremamente atemorizante, pois elas podem cair em mãos erradas. Terroristas suicidas não terão essa inibição forçada pela necessidade de proteger os atacantes contra os efeitos de suas próprias armas!

A segunda notícia sobre bin Laden, mais terrível ainda do que a primeira, é que sua organização teria comprado várias ogivas nucleares que teriam sido roubadas de instalações russas. Embora muitos especialistas tenham duvidado da credibilidade dessa noticia, ela não é improvável. Os remanescentes das outrora poderosas forças armadas soviéticas, forçados pelos baixíssimos salários (quando são pagos), têm recorrido de forma ampla à venda de uniformes, armas portáteis, e, possivelmente, armas químicas e nucleares, dos seus paióis de munições a quem pagar o melhor preço. Diz-se, até, que várias gangues da Máfia russa estariam transformando isso em um negócio altamente lucrativo.

Não vou nem comentar o que representa essa notícia, se for verdadeira. Algumas das modernas ogivas nucleares cabem em uma mala pequena de viajante, e podem ser levadas a bordo de um pequeno avião de passageiros, sem dificuldade. Algumas têm potência suficiente para destruir completamente uma cidade do tamanho de Campinas, matando 50% ou mais dos seus habitantes.

Temo que uma guerra total entre terroristas fanáticos e suicidas, e o governo americano, possa levar a atos extremistas que farão o atentado contra o World Trade Center parecer um passeio no parque. Se acuados, esses terroristas poderão executar o impensável…

O antraz (também chamado de antrax), como expliquei, é a mais provável arma biológica a ser usada por um grupo terrorista, devido à facilidade de espalhá-lo, e à enorme mortalidade que causa. É uma doença bacteriana que infecta animais, geralmente ovinos e bovinos. Seu agente causador é o Bacillus anthracis, um bacilo (bactéria em forma de bastonete) que ocorre em todo o mundo. Ele é capaz também de formar esporos altamente resistentes ao calor e à falta de água, e que portanto podem continuar ativos por muitos anos. Os animais são comumente infectados através da ingestão do esporo encontrado em pastagens ou alimentos contaminados. O ser humano pode ser infectado através da ingestão de carne contaminada ou por contato com carcaças, couro, lã, pêlos e ossos contaminados, ou pela aspiração de esporos em suspensão no ar.  Até o final do século passado, quando uma vacina animal muito efetiva foi desenvolvida pelo cientista francês Louis Pasteur, era uma doença muito comum entre tosquiadores de lã de carneiros e trabalhadores na curtição do couro, tanto é que na Inglaterra o antraz era denominado de “woolsorter’s disease” (doença do classificador de lã).

A versão cutânea da doença causa furúnculos e carbúnculos (bolhas e pústulas amarelas e negras na pele) e pode ser curada facilmente (em 99% dos casos) com antibióticos, principalmente penicilinas sintéticas. As versões digestivas e respiratórias, entretanto, são quase sempre fatais, pois antibióticos e antisoros costumam ser ineficazes no tratamento. A doença começa com os sintomas de uma gripe após um a sete dias de incubação, e se torna extremamente grave em dois a três dias, causando uma mortalidade superior a 95%. Em um acidente ocorrido em 1979 num centro de pesquisas de guerra biológica em Sverdlovsk, na antiga União Soviética, 64 das 94 pessoas contaminadas morreram!

Muitos países fabricaram e estocaram munições biológicas baseadas no antraz. O mais infame e recente deles foi o Iraque.

Bombas com antraz fabricadas pelo Iraque
 
No caso de um ataque maciço, os terroristas provavelmente dispersariam o agente na forma de esporos, em sacos com um pó amarelado de aparência ilusória, que pode ser facilmente transportado em maletas. Ele pode ser colocado em depósitos de alimentos e de água, ou aspergido por um avião fumigador sobre uma cidade, ou por bombas com pequena carga explosiva. Até o momento da ação, seria virtualmente impossível prevenir um ataque por pessoas determinadas, em posse de quantidades razoáveis do agente. Cerca de 50 quilos, jogados sobre uma cidade do tamanho de Belo Horizonte infectariam mais de 500 mil pessoas e provocaria mais de 100 mil mortes.
A revista Veja publicou dois cenários desse tipo de bombardeio: um com um pequeno avião, outro com um avião pulverizador.

O solo e os prédios ficariam contaminados por décadas, e todos os seres mortos teriam que ser incinerados. A descontaminação é dificílima, devido à resistância dos esporos e este seria um trabalho de altíssimo risco para os envolvidos. Para se ter uma idéia da dificuldade, durante a II Guerra Mundial os inglêses fizeram uma experiência de explodir pequenas bombas com esporos de antraz em uma ilha desabitada no litoral da Escócia, chamada Gruinard. Resultado: a ilha ficou inabitável por 42 anos, tal foi o grau de contaminação. Somente quando uma empresa utilizou dezenas de milhares de litros de formaldeído altamente tóxico, injetado até a profundidade de 13 metros no solo, e removeu toda a camada superficial de terra da ilha é que ela foi liberada! A ilha ficou conhecida como "Anthrax Island".

Ilha Gruinard, ou a "ilha de antraz"

 
 
O problema de maior magnitude, no entanto, seria o total colapso e inabilidade do sistema de atenção médica de atender a centenas de milhares de casos de antraz ocorrendo ao mesmo tempo. A pessoa com antraz respiratório ou digestivo precisa imediata internação em UTI, com suporte endovenoso e respiratório, devendo ficar em isolamento total para evitar a contaminação de outros pacientes ou do pessoal do hospital. A chance de escapar vivo consiste em tomar doses maciças de antibióticos caríssimos (meio grama por dia de ciprofloxacina  e doxiciclina), associados à antisoros, por até quatro meses. Mesmo com a existência de uma vacina preventiva, o caos seria imenso, pois a imunidade não aparece na hora: são necessárias injeções semanais durante v$aacute;rias semanas, até completar 18 meses, e a proteção não é completa (90%), nem duradoura (somente um ano), e apenas contra a forma cutânea. Para completar, não existem estoques dessa vacina em nenhum país, e a produção de centenas de milhões de doses demoraria anos para ser completada. Em resumo: seria uma catástrofe sem precedentes, não existe defesa prática possível contra um ataque biológico maciço com antraz.

É um terror desta magnitude que a humanidade está encarando pela primeira vez, trazido pela nova variante de terroristas religiosos radicais.
 

Para Saber Mais

Japanese sect's nerve gas plant destroyed. BBC News, 24 Dez 1998.
 
Aum Shinri-kyo and Related Controversies. Center for the Study on New Religions.
 
Overview of Weapons of Mass Destruction Capabilities in the Middle East and South Asia
 
Anthrax as a Weapon of Terrorism and Difficulties Presented in Response to its Use. Special Report, Defence Journal, Dec. 1998.
 
Bacilo Antracis
 
The 1979 Anthrax Leak in Sverdlovsk. Frontline, PBS, 1998.

Correio PopularPublicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 20/9/2001 e 5/10/2001.

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