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Melancias, Darwin e a Evolução

 

Renato Sabbatini


Outro dia, ao comprar uma melancia no supermercado, fiquei matutando sobre qual teria sido o processo de evolução que levou ao desenvolvimento de uma fruta tão bizarra. De fato, ela parece ter sido criada para o nosso deleite: enorme (o recorde mundial é uma melancia de 120 quilos), carnuda, doce, e com muita água (94% do peso). Já existem até melancias sem semente, que é a parte mais chata da experiência de comê-la...

Cheguei à conclusão que a melancia é um ótimo exemplo para uma pessoa leiga em ciência entender como opera a seleção genética, tanto a seleção natural (a teoria proposta pelo grande naturalista inglês Charles Darwin, no século 19, e que explica o surgimento e a transmutação das novas espécies) quanto a seleção artificial, no caso a exercida pelos cultivadores de melancias, ao longo dos mais de 6 mil anos de sua história como alimento. A melancia que compramos hoje é o resultado da ação conjunta dessas duas forças, e não é por acaso que ela nos agrada tanto.

Eu já sabia que o antepassado da melancia, uma planta cucurbitácea (parente do pepino, do melão e da abóbora), é originário do Deserto de Kalahari, na África. Era uma fruta pequena e amarga, mas que, como muitas plantas que vivem no deserto, adaptou-se á baixa taxa de chuvas, desenvolvendo uma capacidade especial de extrair umidade do solo e armazená-la na polpa da fruta. Com isso, ela se tornou um alimento interessante para os inúmeros animais que tentam sobreviver no deserto, pois é uma fonte de água muito procurada. Existem até histórias de exploradores do deserto que foram salvos da morte por desidratação ao acharem melancias desse tipo.

É aqui que entra em operação a parte mais fascinante da seleção natural. Os animais que comem a melancia naturalmente manifestam uma preferência maior pelas frutas de maior tamanho e de gosto mais doce. Assim, as sementes dessas frutas, ingeridas pelos animais, e expelidas pelas fezes, tinham uma maior probabilidade de germinar e gerar outras plantas, que se propagaram em maiores quantidades pelo ambiente desértico. As variantes de frutas com polpa menos doce ou com menos água se extinguiram gradativamente. Esse processo se reforçou ao longo de centenas de milhares de anos, até produzir uma espécie de melancia parecida com a nossa: doce, com muita água, e com sementes resistentes aos sucos gástricos dos animais (muitas sementes, pois com isso se ambiente.

Pois bem, o ser humano logo descobriu a melancia, e aprendeu a cultivá-la para seu próprio uso. Pinturas egípcias de 2.500 AC. já mostram melancias sendo cultivadas e consumidas. E é aqui que entra o segundo mecanismo, o da seleção artificial. Ao invés de esperar milhares de anos para que o lentissimo mecanismo da seleção natural opere (sujeito, ainda, às mudanças aleatórias do ambiente), o homem passou a comandar a natureza para seu próprio proveito. Criar melancias gigantes é fácil, e demora apenas umas poucas gerações. Basta o agricultor selecionar as maiores melancias que cresceram no seu cercado, tirar as suas sementes e plantá-las para obter a próxima geração. E assim sucessivamente. Da mesma forma, ele pode selecionar qualquer característica determinada geneticamente: velocidade de crescimento, teor de açucar, cor da polpa, resistência a pragas, etc. Os milhares de anos são concentrados em pouco tempo, e se elimina o fator aleatório, obtendo-se assim o resultado econômico. Além disso, os agricultores utilizam métodos que não utilizam a seleção genética, mas que, através de irrigação, adubação, enxertia e eliminação, levam ao produto na direção desejada, mas não produzem uma progênie alterada. Para conseguir melancias extra-grandes, por exemplo, o agricultor arranca todas as melancias de um pé, menos uma. Essa, naturalmente, crescerá mais, pois não está competindo com as outras frutas do pé pela água e pelos fatores nutricionais.

Quando estava escrevendo o livro "A Origem das Espécies", Darwin teve sua atenção voltada fortemente para a seleção artificial, pois entendeu corretamente que era ela a chave para o significado e a forma de operação da seleção natural. Ele gastou anos e anos falando com criadores de pombas decorativas, aves canoras, cães, patos e outros animais domésticos, com agricultores e especialistas em enxertos, etc. Fez também muitas experiências em sua estufa particular na Casa de Downe, no interior da Inglaterra, onde morou quase toda a sua vida, em esplêndido isolamento.  Ele mesmo era um pequeno proprietário rural, com interesse prático em tudo isso.

O próximo passo da evolução da melancia já está sendo realizado e não mais depende da seleção natural ou artificial. É a intervenção direta no genoma da planta, ou seja, a produção de novos tipos de melancias através da engenharia genética. Poderemos criar novas variantes -- e até novas espécies -- de melancias com características que jamais conseguiríamos selecionar artificialmente, pois elas não existem na natureza. Por exemplo, uma melancia capaz de secretar um antibiótico em sua polpa. Ou uma melancia com gosto de maracujá. O céu é o limite, e mais uma vez, o homem brinca de ser Deus...


Correio PopularPublicado em: Jornal Correio Popular, Campinas,  5/5/2000.

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