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Por uma universidade flexível

 

Renato Sabbatini


Dizem que existiram até hoje somente duas instituições capazes de sobreviver continuamente por mais do que um milênio no mundo ocidental. São elas: a Igreja Católica e as universidades. Não deixa de ser uma dupla curiosa: uma é responsável pela manutenção, defesa e propagação da fé, a outra pela descoberta e transmissão do conhecimento; ou seja os dois conjuntos mais valiosos e elevados do intelecto humano.

As universidades mais antigas do mundo foram fundadas no século XII, e, portanto, estão próximas de completar seu primeiro milênio de idade. Nesse período, passaram por grandes transformações e reestruturações: a universidade medieval, a universidade renascentista, a universidade iluminista, a universidade moderna. Como se vê, um número extremamente reduzido de ciclos, em tempo tão longo, o que nos dá imediatamente a idéia de que a universidade muda muito lentamente, é um corpo essencialmente resistente às mudanças, sendo muito conservador e cioso de suas estruturas e rituais, exatamente como na Igreja. Basta ver as cerimônias solenes de muitas universidades, onde ainda se utiliza a beca e o capelo, vestimentas típicas dos docentes ingleses de 300 anos atrás, e que eram usadas para diferenciá-los em relação ao povo comum (como acontece, ou acontecia, também, com os sacerdotes).

É interessante notar também que as próprias práticas educacionais demoram muito para mudar. As faculdades de medicina, por exemplo, oferecem seus cursos com a duração de seis anos desde o século XIII. A maioria esmagadora das aulas ainda é do tipo magistral, acompanhadas de giz e lousa, exatamente como há pelo menos 600 anos (o professor Fredric Litto, coordenador da Escola do Futuro da USP, gosta de brincar dizendo que alta tecnologia em educação ainda é o giz colorido...). Os projetores de slides (um recurso relativamente avançado) existem e são usados desde o século XIX. A tecnologia de disseminação maciça de informação aos alunos ainda é majoritariamente através do papel impresso (uma tecnologia desenvolvida no século XV), e assim por diante. São muitos exemplos que indicam, de um lado, a estabilidade do ensino superior, e de outro, ao mesmo tempo, como ele é retrógrado.

De onde vem a maior ameaça a essa estabilidade, ou se quisermos interpretar por um outro ângulo, de onde virá o estímulo, ou a paulada, que fará a universidade atual se reestruturar completamente, e entrar em um novo ciclo, o da universidade pós-moderna? Sem dúvida, virá da própria sociedade, principalmente do setor produtivo, que começa a se ressentir da inflexibilidade da universidade, desde a maneira com que ela interage com essa mesma sociedade e setor produtivo, até o tipo e a variedade dos seus produtos, ou seja, os alunos graduados e pós-graduados.

A velocidade fenomenal das mudanças neste final de século, causadas principalmente pela globalização e pelas novas tecnologias de virtualização, como a Internet (a chamada "nova economia") é o fator fundamental dessa insatisfação com a universidade. Explico: há um tempo muito, muito longo, a universidade tradicional se dedica a formar as mesmas profissões de sempre: médicos, engenheiros, advogados, economistas, músicos, professores, etc. Com isso, começa a ficar cada vez maior o descompasso entre o tipo de profissional que a sociedade necessita e o que as universidades estão oferecendo em matéria de produto acabado. Por exemplo: uma empresa de telecomunicação precisa hoje de um engenheiro recém-formado que conheça a tecnologia celular GSM, inglês e espanhol, administração de vendas e marketing, comércio eletrônico, e que saiba como desenvolver sites na Internet. Além disso, precisa ser bom em processos sociais e empresariais, como ser um bom empreendedor, criativo, bom líder, bom comunicador, e que entenda de sistemas de controle de qualidade.

Nenhuma universidade está formando este tipo de profissional, é lógico. Com isso, a empresa vai ter que contratar um engenheiro "inacabado", com formação padrão (da qual, pelo menos 50% do que ele aprendeu nos cinco anos anteriores já é obsoleto, e portanto, no mundo da tecnologia, inútil), e investir centenas de milhares de reais e muito tempo e esforço em complementar sua formação, através de cursos internos e externo e treinamento em serviço. É um desgaste enorme, e a empresa acaba sendo obrigado a ser uma nova "universidade", no lugar daquela que é ineficiente.

O leitor poderia indagar: mas qual seria o problema para a universidade gerar profissionais com uma formação mais eclética e atualizada? Não é só uma questão de oferecer mais cursos ao aluno? A resposta é não: na universidade atual, é praticamente impossível. Os currículos são muito inflexíveis, lotados de matérias, sem espaço para adição de mais cursos, e os alunos carecem de orientação sobre o que o mercado espera deles. São muitos problemas estruturais e humanos, entre os quais o fato doloroso de que os bons professores, dinâmicos e atualizados, capazes de montar cursos que atendam à realidade do mercado, estão cada vez mais em falta, e os poucos que restam não estão agüentando os baixos salários do professorado das boas universidades, e estão saindo em massa… em direção ao próprio setor produtivo, que tem uma fome cada vez maior por eles. Com essa fuga, está ocorrendo um doloroso dilema: a própria indústria está ajudando a destruir a universidade, que ela mesma acusa como sendo incompetente para gerar os tipos de profissionais que precisa…

Qual é a solução? Evidentemente, a universidade precisa se reinventar, e rápido. Muito tempo é gasto nos cursos universitários em informar o aluno, atulhando sua cabeça com milhares de fatos, que ficarão obsoletos em um tempo muito curto. Não há um esforço em se dar uma formação intelectual que o prepare para ser um aprendiz independente, capaz de se atualizar de forma autônoma e eficaz pelo resto de sua vida. Com raras exceções, o aluno não é orientado pelas necessidades do mercado, e não aprende a tomar decisões sobre a própria carreira, ou desenvolver as ferramentas cognitivas para ser um "life-long learner" (aprendiz por toda a vida).

A tecnologia da educação a distância e a Internet estarão dentro em breve operando mudanças radicais em todo este cenário. É o que veremos no meu próximo artigo sobre este tema.

Para Saber Mais

Sabbatini, R.M.E.: Aprendendo a distância (1). Correio Popular, Caderno Cosmo, 1/10/99.
Sabbatini, R.M.E.: Aprendendo a distância (2). Correio Popular, 4/8/2000 e 11/8/2000.
Sabbatini, R.M.E.: A universidade aberta. Correio Popular, Caderno de Informática, 1996.


Correio PopularPublicado em: Jornal Correio Popular, Campinas,  21/4/2000.

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