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Catástrofes climáticas e a vida na Terra

Renato Sabbatini

Todo começo de ano assinala o início das manchetes sobre as catástrofes climáticas que se abatem sobre a Terra (no verão, no hemisfério sul, e no inverno do hemisfério norte). Será que o clima está piorando, ou já existiram antes mudanças tão radicais?

A resposta é que o planeta já passou por mudanças tão radicais de clima que a continuidade da vida chegou a ser ameaçada. Por exemplo, muita gente acha que as calotas polares de gelo são "normais", que a Terra foi sempre assim, e que assim sempre será... No entanto, atualmente existem muitas evidências geológicas de que nosso clima está muito longe de ter a estabilidade que conhecemos. Os cientistas já sabem que por várias vezes a Terra foi inteiramente coberta por gelo e neve até a linha do Equador, e que, em outras ocasiões os polos tinham clima ameno e eram cobertos por luxuriante vida típica dos trópicos. Em um artigo recente na revista Scientific American, descreve-se como ocorreu, cerca de 580 milhões de anos atrás, a maior glaciação de todas, tão gigantesca que os oceanos congelaram até a profundidade de um quilômetro, levando à extinção de 99% da vida no planeta. Sobraram praticamente somente algas e bactérias que viviam no fundo dos oceanos, em águas aquecidas por escapamentos de vulcões. O mais espantoso é que a Terra congelou-se dessa forma em um período muito curto, geologicamente falando, certamente em menos de meio milhão de anos, e que a glaciação resultante durou cerca de 20 milhões de anos.

Segundo James F. Kasting, um dos cientistas especializado em glaciações antigas, o fenômeno da "Terra Bola de Neve", como foi alcunhado, "sugere que a vida é muito mais robusta do que pensávamos antes, e que o clima da Terra é muito menos estável do que se pressupunha". Pois, de fato, a vida não se extingüiu totalmente, pois a prova é que estamos aqui para contar isso. Ao contrário: a teoria predominante é que assim que a Terra se descongelou de novo (e vou explicar um pouco adiante como isso aconteceu), houve uma verdadeira explosão de desenvolvimento e de diversificação da vida, que aumentou em muito as formas de vidas eucariotas (ou seja, que têm células dotadas de núcleo), como são todas as plantas e animais. A maioria dos 11 "planos básicos de organismos" existentes hoje surgiram a partir desse período. Assim, podemos dizer que os dinossauros, os mamíferos, os primatas e os seres humanos existiram ou existem hoje graças a uma catástrofe climática sem precedentes (aliás, como todo mundo sabe, os dinossauros se extingüiram, abrindo caminho para a predominância dos mamíferos, devido a uma outra catástrofe, a queda de um meteorito gigante na costa de Iucatán, no México, há 60 milhões de anos.)

O episódio a que me referi acima tem origens ainda misteriosas. Como foi possível a Terra se congelar de forma tão extrema, em período tão curto? Muitos podem ser os motivos: um deles pode ter sido uma inclinação súbita do eixo da Terra, que pode ter chegado até 52 graus. A diferença de insolação ao longo do ano criaria invernos auto-propagantes de intensidade inimaginável. Outra razão seria que o Sol pode ter diminuido sua intensidade. Apenas 5% de variação para menos ou para mais no Sol são capazes de transformar o planeta em um deserto de gelo ou uma fornalha, eliminando boa parte da vida. No entanto, em ausência de fatores extremos como esse, os paleoclimatologistas apelam para o bom e velho dióxido de carbono, que é o gás que mais influencia as temperaturas na superfície terrestre. Tanto assim, que está se pondo a culpa das mudanças climáticas recentes no aumento constante do dióxido de carbono na atmosfera, a partir das emissões artificiais provocadas pelas atividades do ser humano (o famigerado efeito "estufa").

Até mesmo a conformação dos continentes altera muitissimo o clima terrestre. Há 580 milhões de anos, os continentes atuais estavam todos agrupados em torno do Equador, ou seja, em regiões tropicais, e divididos em pedaços com áreas relativamente pequenas. Isso teria aumentado a umidade relativa e a intensidade das chuvas, que removiam constantemente o dióxido de carbono da atmosfera e o fixavam em carbonatos na superfície da terra. Com um CO2 muito baixo, a temperatura terrestre começou a cair precipitosamente (efeito anti-estufa), incrementando o efeito de redução do CO2, e chegando a uma média de 50 graus negativos. Em pouco tempo, o CO2 atmosférico estava super-reduzido, a vida foi brutalmente aniquilada (também levando a maior redução do gás), e a Terra se congelou inteiramente.

Como foi que houve a regressão? A proposta dos cientistas, substanciada pelo registro geológico e paleobiológico, é que os vulcões continuaram ativos, lançando gás carbônico de novo na atmosfera, mas que não era absorvido, pois não existiam chuvas e a superfície da Terra não estava à mostra, permitindo a sua fixação em rochas ricas em carbonato. Assim, rapidamente (talvez em alguns séculos, se ocorreram erupções muito grandes), ocorreu um efeito inverso: formou-se um enorme efeito-estufa que levou a temperatura média da Terra até os 50 ou 60 graus. No entanto, essa fornalha não teve efeito tão forte sobre a vida, pois os organismos que sobraram já tinham se adaptado ao calor das águas vulcânicas. Isolados geograficamente uns dos outros, em pouco tempo se diversificaram enormemente quanto ao material genético, gerando todas as demais formas de vida.

Hoje vivemos há pelo menos 10 mil anos uma era de excepcional benignidade do clima (época em que terminou a última era glacial). Talvez esse fato seja responsável pelo desenvolvimento explosivo da espécie humana, principalmente pela tecnologia da agricultura e pela urbanização. Não quer dizer que isso vá durar para sempre, e isso tem extraordinárias repercussões econômicas, sociais, geopolíticas e até filosóficas. Será que nosso reino como espécie dominante pode acabar um dia? Ou teremos desenvolvido tanto a ciência e a tecnologia que seremos capazes de sobreviver até mesmo em condições extremas como as que ocorreram na primeira grande glaciação? São reflexões muito interessantes. Se pensarmos bem, a longa história do planeta nos ensina que, ao longo dos milênios, muitas coisas podem acontecer e que estamos aqui por um período de tempo infinitesimalmente pequeno perto da escala de tempo geológica. Assim, quem sabe, nos sentiremos mais humildes perante as forças gigantescas e irresistíveis da Natureza!


Correio PopularPublicado em: Jornal Correio Popular, Campinas,  28/1/2000.

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