Edição 1865 . 4 de agosto de 2004

Comportamento
Crer ou não: eis a questão
sobre a homeopatia

Ensinada nas universidades e oferecida no
serviço público, ela é utilizada por milhões
de brasileiros. Mas os cientistas continuam
firmes no ataque: é impossível comprovar
os efeitos dessa terapia


Thereza Venturoli

NESTA REPORTAGEM
Gráfico: Por que a alopatia duvida da homeopatia

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Mais sobre homeopatia em VEJA Saúde
É só fazer o teste: ouça dez ou quinze pessoas, selecionadas ao acaso, sobre o que elas pensam da homeopatia. Boa parte das respostas provavelmente começará com "eu acredito" ou "eu não acredito". Esse é o terreno escorregadio, o da crença, no qual se equilibra a homeopatia nos últimos dois séculos – e não só entre leigos. Ainda que em muitos casos ela pareça trazer resultados positivos, conforme mostram os depoimentos das próximas páginas, não há teste de laboratório capaz de revelar por que isso ocorre – o que a torna alvo de duras críticas por parte de médicos alopatas e cientistas. A fidelidade de sua clientela não é abalada por isso. Os tratamentos à base de substâncias ultradiluídas e ministradas por meio de gotinhas ou glóbulos de açúcar aproximam personagens tão distantes quanto o ex-beatle Paul McCartney, as atrizes Whoopi Goldberg e Catherine Zeta-Jones, a rainha Elizabeth II, a cantora Sandra de Sá e os escritores Goethe e Monteiro Lobato. Este último, ao contar ao amigo mineiro Godofredo Rangel, numa carta de 1917, como descobriu a homeopatia, ecoava os aspectos subjetivos do tratamento: "Não acreditava nem desacreditava. Não pensava no assunto e pronto". O criador do Sítio do Picapau Amarelo dizia ter curado um sobrinho de rinite atrófica – uma infecção que deforma os tecidos internos da narina – empregando "carocinhos mágicos" de mercúrio.

Babiano Accorsi
Farmacêutica manipula remédios homeopáticos num laboratório de São Paulo: segundo os homeopatas, a água guarda a memória do que passou por ela
Os números oficiais são escassos, mas estima-se que 2,5 milhões de americanos usem medicamentos homeopáticos, respondendo por um aumento de 500% nas vendas nos Estados Unidos entre 1990 e 1997. Na União Européia, 20% da população recorre a tratamentos desse tipo – ultrapassando os 30% na França e na Alemanha. No Reino Unido, onde as instituições homeopáticas contam com a bênção da monarquia, com direito a verbas oficiais e propaganda pessoal do príncipe Charles, as vendas de remédios homeopáticos crescem a uma taxa de 12% ao ano. Também no Brasil os números impressionam. Calcula-se que 17 milhões de brasileiros já tenham recorrido à homeopatia em algum momento. Existem no país 2 000 farmácias e o mesmo número de farmacêuticos especializados – 40% deles concentrados no Estado de São Paulo. Segundo a Associação Médica Homeopática Brasileira, o Brasil concentra algo em torno de 15 000 médicos formados nessa especialidade. De acordo com o Conselho Federal de Medicina, a homeopatia ocupa a 16ª posição, em número de profissionais, entre as mais de cinqüenta especializações médicas. Depois de uma explosão nas duas décadas passadas, a homeopatia vem crescendo a taxas mais modestas – mas não encolheu. Tornou-se, portanto, um item estável no panorama dos tratamentos de saúde utilizados pelos brasileiros.

Claudio Rossi
"Passei três anos em depressão: sentia pânico, tinha insônia, tudo me transtornava. Nenhuma terapia adiantou, e achei que a homeopatia seria outra tentativa inútil. Mas, sem o remédio homeopático, pioro. Com ele, fico ótima. Hoje estou empregada e até voltei a estudar flauta."
RODINEIA DA SILVA ROMUALDO,
funcionária de uma rede de supermercados

O Brasil ocupa uma posição de vanguarda na comunidade homeopática internacional: é um dos poucos países em que é obrigatório ter diploma de médico e certificado de especialização para clinicar na área. A Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) já incluem disciplinas da homeopatia em seus currículos regulares, e outras começam a implantar cursos de pós-graduação e residência nessa especialização. Também os farmacêuticos têm de ser especializados. Essa institucionalização terminou inclusive por colocar a homeopatia no cardápio do serviço público de saúde. O número de consultas homeopáticas anuais realizadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) subiu de 260 000 para 302 000, entre 2000 e 2002. A Faculdade de Medicina de Jundiaí mantém um ambulatório homeopático para distúrbios depressivos. Por ali passam cerca de oitenta pacientes por mês – boa parte deles pelo SUS. A corrente está tão bem estabelecida no Brasil que já adentrou o mundo da veterinária. Um grupo de pesquisa maneja há três anos um rebanho de 86 vacas leiteiras na região de Lorena, no interior de São Paulo. Os relatos são otimistas. "A homeopatia tem funcionado bem no controle de micoplasmose, uma doença que atinge o sistema respiratório do animal e causa problemas reprodutivos", diz a veterinária Ana Maria Claro Paredes Silva, do Instituto Oikos de Agroecologia, que desenvolve os estudos com o controle de entidades como o Instituto Biológico de São Paulo e o Ibama.

O aval de instituições respeitadas deveria diminuir o tom das críticas – mas não é isso que acontece. Muitos médicos, farmacêuticos e biomédicos categorizam a homeopatia como uma inverdade que, de tanto ser repetida, acabou se confundindo com uma verdade. Eles refutam ponto por ponto os fundamentos estabelecidos pelo alemão Samuel Hahnemann, o criador da homeopatia, no fim do século XVIII. Um deles é a idéia de que se deve tratar o paciente, e não o mal. Os homeopatas levam em conta os mais ínfimos aspectos de cada indivíduo, como o nível de stress, a que horas sente fome e se tem pesadelos – detalhes que costumam estender uma consulta homeopática para além de uma hora de duração. Ao fim dela, o paciente ganha uma receita personalizada. É claro que os alopatas também levantam o histórico familiar e pessoal do paciente. A diferença é que, numa consulta convencional, não é hábito perguntar sobre pratos prediletos ou sobre o humor ao acordar. O objetivo é receitar um tratamento que ataque diretamente a doença: para a alopatia, todo organismo humano é semelhante e, portanto, deve responder da mesma maneira a determinada droga. Outro ponto de discordância é o tipo de medicamento: enquanto a homeopatia busca a cura pelo semelhante, a alopatia faz uso de remédios que combatam o mal de frente – é o princípio da cura pelo contrário.


Claudio Rossi
"Uma vez, numa gripe muito forte de minha filha, Luisa, tínhamos a opção de correr para o hospital ou passar a madrugada ministrando a cada quinze minutos duas colheradas de uma solução homeopática. Ficamos com a segunda alternativa. A crise terminou, e ela nunca mais passou mal. A homeopatia tem também ajudado meu filho, Felipe, a atravessar a adolescência. Ele está mais animado, menos calado, e até sua postura física mudou."
JOÃO FREDERICO SCIOTTI,
o Derico do Programa do Jô

O tema mais polêmico, contudo, é o conceito de concentração. A alopatia considera que uma droga é tão mais eficaz quanto maior for sua dosagem. Esse é o pensamento que determina, por exemplo, que se tomem duas aspirinas em vez de uma para combater uma dor de cabeça muito forte. Na homeopatia, prega-se o contrário. O medicamento homeopático contém substâncias retiradas de plantas, minerais ou animais que são diluídas à exaustão e sacudidas centenas de vezes. Ao fim dessa operação, chamada dinamização, o frasco com a solução sai do laboratório sem nenhuma molécula da substância originalmente dissolvida ali (veja quadro). Eis uma das idéias de Hahnemann que sobrevivem até hoje: quanto mais diluída e dinamizada uma solução, mais potente ela ficaria.

Pelos procedimentos bioquímicos universalmente aceitos, porém, ela não é mais que isso – uma idéia. Na tradição científica, um medicamento é considerado eficaz se passar com sucesso por algumas etapas. Avalia-se a eficácia da droga em pacientes comparando-a com um placebo – um remédio falso, feito de substâncias inócuas, como farinha e água. É o que se chama ensaio clínico. Também é importante desvendar o mecanismo de ação do medicamento sobre as células e moléculas. O desafio que os alopatas propõem à homeopatia é que ela comprove seus efeitos conforme essa receita tradicional. Aí começam a surgir as dificuldades. Como os remédios homeopáticos geralmente não contêm nem traço de seu princípio ativo original, aos olhos da bioquímica eles não passam de água. Os homeopatas dizem que faltam à ciência instrumentos para realizar a medição que mostraria a existência, nos seus remédios, do princípio ativo num nível infinitesimal. Os alopatas, é claro, refutam essa idéia com veemência. "Se a homeopatia tem de responder a perguntas diferentes das que são propostas a todos os outros campos do conhecimento científico, então temos de mudar a ciência. E, se temos de mudar a ciência, então a homeopatia não é científica, ao menos por ora", afirma o médico Paulo Bento Bandarra, de Porto Alegre, um dos principais opositores à homeopatia no Brasil, integrante do Movimento Medicina Responsável.

Claudio Rossi
"Alessandra era bebê quando surgiram os sintomas da síndrome nefrótica, uma doença renal grave. As crises eram freqüentes, e o tratamento alopático exigia internações mensais para receber medicamentos. Mas o conjugamos com a homeopatia. Hoje, Alessandra tem 13 anos e está há três sem crises. A alopatia foi importante, mas a homeopatia ajudou."
CREUSA YOKO NAGAOKA RECHSTEINER,
paisagista

A maior parte das realizações homeopáticas é registrada em relatos orais e ensaios clínicos. Um desses estudos, publicado em 1997 na revista médica inglesa The Lancet, comparou os resultados de 89 ensaios clínicos e concluiu que os medicamentos homeopáticos são, no mínimo, duas vezes e meia mais eficazes do que os placebos. Até aí, a primeira etapa da demonstração científica está cumprida. Mas como explicar quimicamente o funcionamento de soluções nas quais não resta nada do ingrediente que foi pingado ali? Impossível. "Se a homeopatia tem algum valor científico, é o de ajudar a compreender o efeito placebo. Como esse efeito, absolutamente psicológico, está muito ligado à confiança que o paciente deposita no médico, entendê-lo a fundo pode levar a um aperfeiçoamento do modo como se fazem a consulta, o diagnóstico e a prescrição do tratamento", diz o biomédico Renato Sabbatini, professor da Universidade Estadual de Campinas.

O efeito placebo é reconhecido pelas duas correntes como um ponto importante em qualquer terapia. Estudos demonstram que a confiança no médico e nos remédios, bem como a vontade do paciente de se curar, aumenta os resultados positivos em vários tipos de tratamento. Num ensaio clínico publicado em 1987 na revista da Associação Médica Brasileira, uma equipe mista de homeopatas e alopatas comparou medicamentos homeopáticos com placebos em sessenta pessoas vítimas de insônia. Resultado: os dois grupos – o que recebeu o remédio de verdade e o que tomou bolinhas de açúcar – apresentaram o mesmo resultado. "Para os adeptos da medicina convencional, essa é uma prova de que a homeopatia não funciona", diz o psicofarmacólogo Elisaldo Carlini, da Unifesp, que conduziu a experiência. "Mas, se pensarmos que a homeopatia é, mais do que o medicamento, todo um procedimento que começa com uma atenção especial ao paciente, temos um resultado positivo." Mesmo entre os alopatas, há quem concorde: "Talvez chegue a hora de a medicina superar a visão dualista, que divide o homem entre corpo e alma, e começar a levar em conta aspectos imateriais que influem na saúde", diz o infectologista Marcos Boulos, da Universidade de São Paulo. Cada vez mais alopatas, de fato, admitem que se recorra aos medicamentos homeopáticos, porque percebem melhoras em alguns pacientes – desde que não se abandone o tratamento convencional, evidentemente.

"Aderi à homeopatia há doze anos, porque não conseguia curar uma dor de garganta crônica. Levei seis meses para melhorar, mas nunca mais o problema voltou tão forte. Não fui para a homeopatia levado pela crença. Fui porque a alopatia não conseguiu me ajudar."
WILLEM DIAS,
editor de filmes

Claudio Rossi

Os homeopatas ficam indignados ao ouvir que seus remédios não passam de placebos. Para eles, o segredo da composição dos medicamentos homeopáticos pode estar em algo chamado "memória da água" – uma teoria que diz que as moléculas da água podem mudar o modo como se organizam depois de uma sucessão de diluições e agitações (chamadas de dinamização pelos homeopatas). Até o momento, todas as tentativas de comprovar que a memória da água é mais do que uma teoria trouxeram resultados no mínimo discutíveis. Ainda assim, os seguidores da homeopatia prometem não jogar a toalha – ao contrário. Batem na tecla de que a ciência é que é falha. "Talvez precisemos, sim, ampliar o campo da compreensão da ciência atual para começar a entender a homeopatia", disse a VEJA o homeopata Peter Fisher, diretor do Royal London Homoeopathic Hospital e médico particular da rainha Elizabeth II. Fisher coordena a redação de um relatório da Organização Mundial de Saúde que relaciona 700 evidências a favor da homeopatia e recomenda a governos e entidades internacionais que a considerem uma opção para o serviço de saúde pública. Flávio Dantas, professor de homeopatia da Universidade Federal de Uberlândia e um dos principais pesquisadores dessa linha de medicina no Brasil, almeja algo mais: que se analisem os medicamentos homeopáticos com rigor idêntico ao dedicado aos remédios convencionais. Para ele, se houver um maior esforço por parte dos estudiosos e mais dinheiro para as pesquisas, será possível descobrir, do ponto de vista científico, o mecanismo de funcionamento da homeopatia. "Assim poderemos até, quem sabe, quebrar alguns paradigmas da ciência", acredita Dantas. Isso, para os homeopatas, seria a realização de um sonho – provar que a homeopatia vai além do efeito placebo e é mais do que um simples fenômeno de comportamento.

 

O remédio dos reis

Percorrer a história da homeopatia é quase como escalar a árvore genealógica da nobreza européia: a terapia criada pelo médico alemão Samuel Hahnemann (1755-1843) espalhou-se, no século XIX, seguindo uma corrente de sangue azul. Foi graças aos laços de parentesco entre as famílias reais que a novidade fez sua entrada no Reino Unido, sob a escolta de Frederick Hervey Quin, discípulo de Hahnemann. Freqüentador dos salões aristocráticos, Quin era médico do príncipe Leopoldo, mais tarde coroado rei da Bélgica. Este, por sua vez, era tio de Albert, marido da rainha Vitória. Ao conduzir a homeopatia para o Palácio de Buckingham, Quin selou a conexão entre a medicina de Hahnemann e a família real britânica, que desde então sempre deu apoio moral e financeiro à construção de hospitais e ambulatórios homeopáticos.

Hahnemann não é o pai das idéias básicas da homeopatia. O grego Hipócrates já afirmava, no século V a.C., que uma doença podia ser debelada com substâncias que causavam sintomas parecidos. E, no século XVI, o suíço Paracelso imaginava que venenos ministrados em pequenas doses podiam curar doenças. Os estudos do médico alemão começaram com a aplicação em si mesmo e em seus familiares de substâncias tóxicas, como quinino, beladona e mercúrio, que já eram usadas contra a malária. Ao verificar que, em pessoas sãs, a droga provocava os mesmos sintomas que a doença, Hahnemann restabeleceu o princípio de cura pelo semelhante. Para que se evitasse a intoxicação, as substâncias passaram a ser diluídas milhares de vezes – e agitadas violentamente, para liberar o que Hahnemann acreditava ser a sua energia. Aí está a origem do que os homeopatas chamam de dinamização.

Não deve ter sido difícil conquistar a confiança dos primeiros pacientes, habituados aos horrores dos tratamentos de fins do século XVIII, que incluíam sangrias e ingestão de purgantes e substâncias tóxicas – procedimentos às vezes mais arriscados do que a doença que pretendiam curar. O presidente americano George Washington foi uma das vítimas dessa terapêutica assassina. Para combater uma febre, Washington teve cerca de 2 litros de sangue drenados. Em poucas horas, o ilustre paciente já não sentia mais dor – estava morto. A homeopatia era bem mais suave e, portanto, mais atraente.

A homeopatia sempre figurou no centro de um debate maior, entre duas doutrinas que dividiam filósofos e naturalistas dos séculos XVIII e XIX: vitalismo e materialismo. Para os materialistas, todos os fenômenos naturais poderiam ser explicados em função da matéria e suas propriedades. O corpo humano era uma máquina e a saúde dependia de manter azeitada cada engrenagem. O materialismo rendeu – e continua rendendo – grandes avanços, como a descoberta dos micróbios e a invenção dos antibióticos. Já para os vitalistas o organismo se manteria em harmonia graças a uma força vital, intangível e inexplicável pelas leis do mundo físico. O homem, mais do que corpo e mente, seria parte do universo e deveria se manter integrado a ele. Com adaptações, essa doutrina sobreviveu aos trancos da história, no que hoje se chama visão holística, presente em terapias alternativas como a homeopatia.